Malícia Musical
Geralmente vindas do
Nordeste brasileiro, as músicas que têm duplo ou triplo sentido, constituem um
repertório vasto e certamente muito engraçado, expressando a vivacidade de um
povo de forma jovial, cordial, fantástica e bela, que no Sudeste é cruel,
afrontosamente sexual, boçal e feia.
Como tudo que é
popular, é pouco estudado pelas elites, se o é, exceto como novo modo de
dominância e exploração. Como com a literatura de cordel, não houve chance de
aparecimento de grandes livros onde sejam pesquisadas essas músicas, quer
dizer, suas letras e melodias, o que é de estarrecer, porque certamente noutros
lugares os acadêmicos terão vasculhado seus povos, o que é importante não
apenas em si mesmo, como devoção ao povelite/nação, mas como motivo para a
constituição de novas bases de exploração (veja só que termo os capitalistas
usam! – indica dois brasis) ou participação (o que seria muito mais justo –
indicaria unidade) econômica/sociológica, quer dizer, produtiva/organizativa.
Qual a razão de
colocarem um duplo sentido nas frases?
A primeira é a fuga
à censura, porque em geral tem conotações sexuais. Mas não só. Juca Chaves é um
mestre nisso, e as razões dele são as de castigar os regimes ditatoriais, como
na pergunta da época da ditadura militar: “Como se mede um burro? Mede-se
(Médici, o general-ditador da ocasião) da cabeça aos pés”.
A segunda é a
esperteza do autor, de criar palavras ou conjuntos de palavras homófonas, que
têm o mesmo som, mas significados diferentes, de tal modo a que ao inocente
nível exterior correspondam picantes níveis interiores, decifrados conforme a
competência da audiência.
A terceira é a
resistência local do povo à dominância de outras regiões, formando uma cultura
paritária, mas divergente, que coabita e aprecia as outras, mas não se rende.
Enfim, é um não à homogeneização cultural/nacional.
A quarta é o desafio
explícito à burguesia, posto na expressividade popular, que diverge
notavelmente da comportadinha e yuppie manifestação letrada oficial.
Eles não são, nem de
longe, bobos, o que, pensando bem, seria mesmo de esperar, dado que sobrevivem
frente a uma tecnociência muito mais poderosa com seus sentimentos “obsoletos”,
“arcaicos”, “pueris”. Essa malícia musical tem, conseqüentemente, VALOR DE SOBREVIVÊNCIA
PSICOLÓGICA, isto é, constitui todo um dialeto não violentado pela cultura
homogeneizante, capitaneada pela Globo. Em termos americanos seria underground,
subterrâneo. Eis ai algo autenticamente revolucionário, que sequer é tomado
como tal.
A Academia passa por
cima disso tudo, a cultura/nação de base, sem dar a mínima bola, sem um
fragmento de reflexão sobre as profundidades dela, o que além de ser um pecado,
relativo ao orgulho, é perda de substância e de propriedade de toda uma ampla
área desconhecida. Os pesquisadores cooptados pela burguesia estão longe de
conhecer a totalidade do país, talvez felizmente.
Em resumo, há uma
quantidade de áreas não tocadas pela P&D brasileira das universidades e
empresas, o que acaba por nos salvar da generosa mediocridade dos plutocratas.
Vitória,
sexta-feira, 26 de abril de 2002.
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