sexta-feira, 30 de dezembro de 2016


Dois Pinóquios Recentes

 

                            No filme com Robins Willians, baseado em texto de Isaac Asimov, O Homem Bicentenário, que conta a história de um robô que durante duzentos e tantos anos busca tornar-se humano, e no deplorável filme dirigido por Steve Spielberg, IA (Inteligência Artificial), onde um garoto-robô, interpretado pelo garoto Osmond busca tornar-se humano (num período de milhares de anos), o que está sendo retratada é a velha questão de Pinóquio, o boneco de pau que queria ser gente.

                            Até então parecia, apesar de tudo (14 mil guerras e bilhões de atrocidades cometidas contras seres humanos, animais, plantas e fungos, contra todo tipo de vida, aliás), que ser pessoa seria coisa boa. Agora devemos rever nossos conceitos.

                            Em primeiro lugar, o mapeamento do genoma humano abrirá caminho para reparo das quatro mil (segundo Asimov) ou cinco mil doenças humanas hereditárias, de modo que no futuro só as terá quem quiser (quem desejaria não ter, ser deficiente de uma perna? –porém sempre existe um doido).

                            Em segundo lugar, novos seres serão acrescentados, a partir do que já existe (golfinhos, macacos, elefantes, baleias expandidas), e construindo do zero robôs e computadores inteligentes, sem falar em seres humanos expandidos (ciborgues) e robôs humanizados (andróides), não contando ainda as meras adições de módulos de memórinteligência. Quem hoje desejaria ser um neanderthal? Ou qualquer primata? Ou, muito mais próximo, um medievo? Ou sequer um do século passado? Ou da década dos 1960, quando os negros e as mulheres eram reprimidas? Quem desejará ser como nós, quando poderes muito maiores, dos quais não fazemos mesmo pálida idéia, estiverem disponíveis?

                            Em terceiro lugar, haverá uma variedade nova de aceitações e consentimentos, novas interações em rede, exponencialmente elevadas. Nós ficamos imaginando este mundo em que estamos agoraqui como referência. Quem, no século 19 e até na primeira metade do século 20 poderia imaginar as coisas que estão acontecendo em nossos dias? Se há 50 anos as pessoas mais avançadas não puderam, salvo exceções, imaginar o que está efetivamente ocorrendo agora, que dirá de 200 anos no futuro?

                            Certo, são filmes, é diversão passageira, para o povo, e como tão devemos aplaudir – a vida é dura demais, precisamos dessas digressões, dessas alucinações coletivas que são as tecnartes. Contudo, em termos reais, um pouco de pensamento convém para demolir essas fábulas, cuja ingenuidade é por vezes um serviço burguês direto ou indireto, na medida em que serve para desviar a atenção dos nossos problemas mais graves, que submetem o povo à escravidão de corpo e de alma, como está posto na palavra original robot, escravo. Povo escravo das elites, elites escravas de sua tendência de submeter o povo a desmandos e reduções psicológicas.

                            Você voltaria a este tempo da burguesia?

                            Você desejaria ser gente burguesa?

                            Se eu fosse robô ficaria na moita alguns séculos ou até milênios, esperando a onda de selvageria passar.

                            Vitória, quarta-feira, 02 de outubro de 2002.

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