Pessoas que Pensam
No
livro de Angélica Sátiro e Ana Mírian Wuensch, Pensando Melhor
(iniciação ao filosofar), São Paulo, Saraiva, 1977, p. 351, elas dizem: “A todo
instante os meios de comunicação ressaltam a importância das pessoas que
pensam”, grifo meu.
Quem
são as pessoas que pensam?
Não
são os fungos, nem as plantas, nem os animais, são as pessoas, pois está dito
que são PESSOAS QUE PENSAM. A primeira característica é serem pessoas. São
pessoas, e pensam. Mas existirão pessoas que não pensam? Mesmo os mongolóides,
portadores da síndrome de Dawn, pensam. Na realidade, se virmos uma reta na
horizontal e imaginarmos que ela é o conjunto de memorinteligência, a subida de
um lado corresponderá à descida de outro, havendo, no entanto, retas cada vez mais
altas e cada vez mais baixas a partir dessa média. SE a média for 100, ter 70
de memória significará ter 30 de inteligência, ou vice-versa; mas sempre
poderemos ter alguém com uma média de 400, digamos. Há aquela gente superfocada
na memória, há a gente superfocada na inteligência, e há gente que tanto possui
de uma quanto de outra.
Mas,
pelo fato de ser sempre MEMÓRIA HUMANA e INTELIGÊNCIA HUMANA, é sempre humana,
característica do pensar. Então pensar, como o entendemos, é sempre humano.
Como os outros seres humanos desapareceram antes de nos entendermos como tais,
antes de 10 mil anos atrás, se segue que todo pensar na Terra hoje é humano. A
racionalidade animal é, por definição, não-humana.
Todos
os seres humanos pensam, e dizer-se humano é dizer-se pensador. A
característica central é esta. Poderíamos dizer de um corpo que não tivesse um
cérebro humano, mas sim as conformações gerais, que é um corpo humano, porque
serviria para integrar a formestrutura completa de um corpomente humano. A
característica central, não obstante, estaria excluída. Não compreendemos uma
criança como plenamente humana até que ela fale, que é uma característica
fundamental, a de poder linguajar, falar.
Para
resumir, todos os seres humanos pensam, de alguma maneira. Essa é a definição
de humanidade, o pensar.
O
que quereríamos dizer com “pessoas que pensam”? Uma vez, na Fazenda Clube Santa
Tereza, na cidade de mesmo nome no ES, um conhecido, meu xará, se dirigiu a mim
dizendo: “Nós, as cabeças pensantes...”. É assim que as elites agem, com o
objetivo de excluir o povo, dizendo que o povo não pensa. O povo pensa, só não
o faz com os detalhes que o ócio possibilita às elites. O povo deve carregar o
mundo às costas, razão pela qual não pode parar para pensar.
Entretanto,
lembremos que as pessoas (indivíduos, famílias, grupos e empresas) e os
ambientes (municípios/cidades, estados, nações e mundo) são aglomerações
crescentes de poder de raciocínio. Nenhum ser humano pode pensar tanto quanto
ou mais que uma nação, e esta é tanto composta de povo quanto de elites.
Por
“pessoas que pensam” as autoras certamente querem dizer as pessoas que pensam
com mais afinco, com mais vigor, com mais atenção, com mais constância, com
mais determinação. Mas que pode haver de tão maravilhoso nisso? Há pessoas que
correm mais que eu, que saltam mais, que mergulham durante mais tempo e mais
fundo, que arremessam lanças e que fazem tantas outras coisas de que não sou
capaz, e eu não sinto admiração nenhuma por isso. Por quê o contrário deveria ser
verdadeiro, excepcionalmente? É maravilhoso, sim, o que algumas pessoas
fizeram, mas não por outros não terem feito, e sim como anúncio de avanço. Uns
têm umas tarefas, outros, tarefas distintas, vivemos todo do conjunto dos
fazeres.
Então
essa frase, “pessoas que pensam”, não passa de segregação, de afastamento, de
desautorização para o pensar. Por princípio, como vimos, pensar é de todo ser
humano, é a própria definição de ser humano. Pensam negros africanos, brancos
europeus, vermelhos americanos e amarelos asiáticos. Pensam mulheres e homens,
altos e baixos, crianças e adultos, velhos e novos, ricos e pobres – todos
pensam.
Daí
que, se é chamada atenção para as “pessoas que pensam”, é para dizer que há
quem “não pense”, que supostamente teria perdido sua humanidade. É uma
declaração fortíssima, embutida numa passagem aparentemente simplória. Quem não
pensa? Como sabemos que não pensam? Quais são os critérios para identificarmos
os que não pensam? Quem atribuirá as notas dos quesitos? Com quais interesses?
Para favorecer a quem?
Muitas
perguntas deveríamos fazer.
É
inquietante que de alguns seja tirado o que define a humanidade. Dizia-se
outrora que as mulheres não pensavam, os negros, os bárbaros, os estrangeiros,
estes e aqueles, todo tipo de afastamento.
É
surpreendente que num livro editado por uma grande editora, a Saraiva, em 1997,
quase no limiar do século XXI, algo assim seja dito. Pior ainda, logo abaixo
elas acrescentam: “Hoje em dia, as empresas começam a divulgar a necessidade de
trabalhadores capazes de pensar por si mesmos”.
Por
quê, antes os trabalhadores não pensavam? Pensavam, sim, claro, só que o
pensamento deles não era respeitado. E, pelo que vejo, continua sem ser. O que
a pressa de dizer as coisas e a falta de amor pelo próximo podem fazer! Haja
Deus para nos salvar da perdição.
Vitória,
terça-feira, 24 de setembro de 2002.
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