Os Que Pensam por Nós
Nas
páginas 339 e ss. do livro de Angélica Sátiro e Ana Mirian Wuensch, Pensando
Melhor (iniciação ao filosofar), São Paulo, Saraiva, 1997, elas colocam uma
extensa citação de Walter O. Kohan, professor de filosofia da Universidade de
Buenos Aires. Especialmente, na página 340 uma das personagens, Carolina, diz: “Em geral, no trabalho se é pago para fazer coisas que
outros pensam por você”.
Essa
é uma identificação parcial, daquelas da esquerda, que está no interior da
grande esfera da revolta contra a dominação, em particular a dominação
estrangeira.
Porque,
PENSANDO MELHOR, o mundo é composto de pessoas (indivíduos, famílias, grupos,
empresas) em ambientes (municipais/urbanos, estaduais, nacionais e mundial).
Como são seis bilhões de indivíduos, e cada um de nós é apenas um, ocorre que
há (na realidade, eram seis bilhões em 2000, agora já passou disso) mais de
seis bilhões de pessoas pensando por nós. Isso é ruim?
Sim
e não.
Devemos
agradecer a tantas pessoas, porque foi o pensamento conjunto de, dizem os
cientistas, muitos dentre os 100 bilhões de seres humanos que já nasceram, que
fizeram da humanidade o poder planetário que ela é hoje. Não fossem os
pensamentos de todos esses que pensaram por mim pouca coisa eu teria. Ainda
estaria caçando o que comer nos campos ou em florestas, com o risco de ser
devorado por alguma fera. Se tivesse sobrevivido ao primeiro ano de vida para
ter a expectativa de vida de 25 a 30 anos – aliás, vida superpenosa.
Então,
eu sou agradecido que pensem por mim.
Bom,
qual é o pensamento que pensam por mim que é desagradável? Lá pelo começo da
década dos 1970 participei ativamente de debates sobre a liberação das
mulheres, sempre favorável. Havia uma, lésbica, a quem eu dizia que era preciso
acabar com a opressão. Nem sequer com o opressor, porque o somos todos e cada
um, mais ou menos, exceto os raros que nós nem podemos identificar. Ela
insistia em atacar OS HOMENS, queria acabar conosco. Nem via que ela mesma era
a portadora da opressão.
Se
nós não sabemos pensar, e se não pensamos com afinco, com detalhe amoroso, com
interesse e perspicácia, pode acontecer de termos de despender energia demais
no projeto de libertação, até correndo o risco de sermos derrotados.
O
pensamento que pensam por mim e que é desagradável é aquele que contesta e substitui
minhas vontades VÁLIDAS, dentro do quadro civilizatório. Pois alguém que deseje
matar não deve ver esse pensamento prosperar. Dentre as válidas há as que miram
a liberdade (que é pessoal, individual até) e as que olham pela igualdade (que
é ambiental, comunitária, coletiva). Pelo lado da igualdade é útil que pensem
por mim. Contudo, desejo preservar a liberdade pessoal, a qual, como sabemos,
só pode ir até onde não confronte a alheia liberdade, dentro dos marcos
constitucionais.
Se
segue que o pensamento dos outros que me é desagradável é aquele que ofende
minha liberdade. Ora, como vou saber se minha liberdade é não-ofensiva? Só
consultando minha coletividade, todos e cada um, o que é obviamente impossível,
visto que há no Brasil mais de 170 milhões de habitantes. Agora, imagine se
numa fábrica a cada manhã as gerências reunissem os operários todos para
discutir da conveniência de trabalhar naquele dia, quanto produzir, sob que
ritmo, com que qualidade, etc. A produção paralisaria, o mundo estancaria.
Por
aí vemos que a liberdade, como a igualdade, tem hora e lugar, tempespaço,
história e geografia. Perguntemos pois: 1) qual é o espaço ou geografia da
liberdade e da igualdade? 2) qual é o tempo ou história da igualdade e da
liberdade?
Agora
mesmo, escrevendo aqui, estou pensando pelas pessoas, e as pessoas, neste mesmo
instante, estão pensando por mim. Devemos concluir que uma parte do pensamento
total da humanidade, neste instante, é-me desagradável, enquanto outra parte é-me
agradável. Da parte que é desagradável alguma porção será útil para mim, como
uma injeção que, embora doendo, me socorra e livre de qualquer doença. Da parte
que é agradável certo pedaço será inútil e até perigoso, como aquele prazer que
os lemingues têm de caminhar para o precipício e a morte.
De
modo que, em se tratando de pensamento, devemos ter cuidado, como em tudo. O
pensamento é um contrato de conhecimento com muitas letrinhas miudinhas mesmo,
que devemos ler atentamente, porque até os que pensam favoravelmente por nós
podem estar nos enganando. E a si mesmos.
Vitória, quinta-feira, 19 de setembro de
2002.
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