sábado, 31 de dezembro de 2016


Os Que Pensam por Nós

 

                            Nas páginas 339 e ss. do livro de Angélica Sátiro e Ana Mirian Wuensch, Pensando Melhor (iniciação ao filosofar), São Paulo, Saraiva, 1997, elas colocam uma extensa citação de Walter O. Kohan, professor de filosofia da Universidade de Buenos Aires. Especialmente, na página 340 uma das personagens, Carolina, diz: “Em geral, no trabalho se é pago para fazer coisas que outros pensam por você”.

                            Essa é uma identificação parcial, daquelas da esquerda, que está no interior da grande esfera da revolta contra a dominação, em particular a dominação estrangeira.

                            Porque, PENSANDO MELHOR, o mundo é composto de pessoas (indivíduos, famílias, grupos, empresas) em ambientes (municipais/urbanos, estaduais, nacionais e mundial). Como são seis bilhões de indivíduos, e cada um de nós é apenas um, ocorre que há (na realidade, eram seis bilhões em 2000, agora já passou disso) mais de seis bilhões de pessoas pensando por nós. Isso é ruim?

                            Sim e não.

                            Devemos agradecer a tantas pessoas, porque foi o pensamento conjunto de, dizem os cientistas, muitos dentre os 100 bilhões de seres humanos que já nasceram, que fizeram da humanidade o poder planetário que ela é hoje. Não fossem os pensamentos de todos esses que pensaram por mim pouca coisa eu teria. Ainda estaria caçando o que comer nos campos ou em florestas, com o risco de ser devorado por alguma fera. Se tivesse sobrevivido ao primeiro ano de vida para ter a expectativa de vida de 25 a 30 anos – aliás, vida superpenosa.

                           Então, eu sou agradecido que pensem por mim.

                            Bom, qual é o pensamento que pensam por mim que é desagradável? Lá pelo começo da década dos 1970 participei ativamente de debates sobre a liberação das mulheres, sempre favorável. Havia uma, lésbica, a quem eu dizia que era preciso acabar com a opressão. Nem sequer com o opressor, porque o somos todos e cada um, mais ou menos, exceto os raros que nós nem podemos identificar. Ela insistia em atacar OS HOMENS, queria acabar conosco. Nem via que ela mesma era a portadora da opressão.

                            Se nós não sabemos pensar, e se não pensamos com afinco, com detalhe amoroso, com interesse e perspicácia, pode acontecer de termos de despender energia demais no projeto de libertação, até correndo o risco de sermos derrotados.

                            O pensamento que pensam por mim e que é desagradável é aquele que contesta e substitui minhas vontades VÁLIDAS, dentro do quadro civilizatório. Pois alguém que deseje matar não deve ver esse pensamento prosperar. Dentre as válidas há as que miram a liberdade (que é pessoal, individual até) e as que olham pela igualdade (que é ambiental, comunitária, coletiva). Pelo lado da igualdade é útil que pensem por mim. Contudo, desejo preservar a liberdade pessoal, a qual, como sabemos, só pode ir até onde não confronte a alheia liberdade, dentro dos marcos constitucionais.

                            Se segue que o pensamento dos outros que me é desagradável é aquele que ofende minha liberdade. Ora, como vou saber se minha liberdade é não-ofensiva? Só consultando minha coletividade, todos e cada um, o que é obviamente impossível, visto que há no Brasil mais de 170 milhões de habitantes. Agora, imagine se numa fábrica a cada manhã as gerências reunissem os operários todos para discutir da conveniência de trabalhar naquele dia, quanto produzir, sob que ritmo, com que qualidade, etc. A produção paralisaria, o mundo estancaria.

                            Por aí vemos que a liberdade, como a igualdade, tem hora e lugar, tempespaço, história e geografia. Perguntemos pois: 1) qual é o espaço ou geografia da liberdade e da igualdade? 2) qual é o tempo ou história da igualdade e da liberdade?

                            Agora mesmo, escrevendo aqui, estou pensando pelas pessoas, e as pessoas, neste mesmo instante, estão pensando por mim. Devemos concluir que uma parte do pensamento total da humanidade, neste instante, é-me desagradável, enquanto outra parte é-me agradável. Da parte que é desagradável alguma porção será útil para mim, como uma injeção que, embora doendo, me socorra e livre de qualquer doença. Da parte que é agradável certo pedaço será inútil e até perigoso, como aquele prazer que os lemingues têm de caminhar para o precipício e a morte.

                            De modo que, em se tratando de pensamento, devemos ter cuidado, como em tudo. O pensamento é um contrato de conhecimento com muitas letrinhas miudinhas mesmo, que devemos ler atentamente, porque até os que pensam favoravelmente por nós podem estar nos enganando. E a si mesmos.
                            Vitória, quinta-feira, 19 de setembro de 2002.

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