sexta-feira, 30 de dezembro de 2016


Língua Amarrada

 

                            No livro História da Filosofia, vol. II, São Paulo, Paulinas, 1990, de Giovanni Reale e Dario Antiseri, páginas 848 e 849, os autores, falando de Alexandre Verri (filósofo italiano, 1741-1816, 75 anos entre datas), citam-no: “Os pensadores ingleses escrevem com muito cuidado com a ordem; os franceses com períodos vibrantes e breves. Os autores dessas duas respeitáveis nações cuidam de, na composição, seguir as pegadas dos seus pensamentos; permitem o vôo livre do intelecto; não temem os episódios importantes; não fazem uma lei para obrigar as idéias a escorrerem dentro de um leito, por assim dizer, mesmo sendo transbordantes; não sacrificam os conceitos aos vocábulos, o gênio ao método, a robustez do estilo à languidez da pureza. Nós, ao contrário, temos em nosso escrever um não sei que de amarrado, de circunscrito, de tímido, de confuso. Qual dos italianos propostos como modelos teria escrito com o estilo do Espírito das leis? ”

                            Isso não vale só para a Itália, vale para todos os países latinos, menos a França, como ele diz; vale para o Brasil, para o México, a Argentina, a Espanha, todos mesmo. Por que seria assim?

                            Vamos listar as qualidades dos nórdicos, por oposição aos defeitos dos mediterrâneos.

                            QUALIDADES DOS NÓRDICOS

1)      Seguir os passos dos seus pensamentos (passo a passo, com método, com cuidado, com atenção);

2)     Permitem o voo livre do intelecto;

3)     Não temem os episódios importantes;

4)     Não fazem leis que prendem o intelecto dentro de um leito;

5)     Não sacrificam os conceitos aos vocábulos;

6)     Não sacrificam o gênio ao método;

7)     Não sacrificam a robustez do estilo à languidez da pureza.

DEFEITOS DOS MEDITERRÃNEOS

1)      Tudo que é qualidade nos nórdicos;

2)     Escrever amarrado;

3)     Circunscrição ou fechamento;

4)     Timidez;

5)     Confusão.

De onde vem tudo isso? Ah, se tivessem prestado atenção ao Verri! Como o meio da vida dele se deu por volta de 1779, passaram-se 223 anos até 2002.

Será que não viram isso? Uns não viram, outros sim, o interesse de classe dos burgueses não-distributivistas mediterrâneos interpondo-se para impedir um estilo mais fluído, menos amarrado, menos torcido, mais transparente, mais “transferente” de info-controle. DE PROPÓSITO uns e por ignorância outros, todos alienados a seus interesses de classe, impediram a burguesia atrasada mediterrânea e seus herdeiros tropicais, Brasil no meio, de ter uma prosa translúcida, competente, capaz de transferir a riqueza do Conhecimento contemporâneo ao povo e até às elites.

Se Nietzsche diz que a língua é a alma nacional, se segue que a alma ou povelite ou nação mediterrânea é amarrada, presa, prisioneira de uma visão-de-mundo ou percepção-de-mundo tacanha, distorcida para menos, nada fantasista, nada futurista – é uma aplicação passadista, inoperante, quase morta, presa pelas pontas, pessimista de língua PORQUE a visão da burguesia mediterrânea é tudo isso. Como não tem projeto de largo curso, tem em correspondência uma lingüinha pequena, e até bífida, de cobra, língua dividida da subserviência, dos que são capachos.

Se Verri falava da Itália do Setecento (século XVIII) perante a França e a Inglaterra, podemos colocar o paralelo de agora, século XXI, em relação aos EUA e à Europa dos 15. Miserável tem sido esse destino nosso, que nos faz passar de uma dominação a outra, sucessivamente, sem nunca podermos aspirar ou chegar à liberdade. Que povinhos bundas moles nós somos!

Isso vem, sem dúvida nenhuma, como tenho dito e repetido, da pequeneza de nossos projetos, PORQUE na Belíndia que o Brasil é há 20 % de Bélgica, com 34 milhões de habitantes, e 80 % de Índia, com 136 milhões privados da língua/nação/alma/povelite mais potente, mais vigorosa, mais dinâmica, mais poderosa, mais futurível, mais autoconsciente e independente. Projetando só para 20 % a língua ou alma não precisa ser grande. E, como disse Fernando Pessoa, tudo é grande quando a alma não é pequena. Invertendo, poderíamos dizer que tudo é pequeno quando a alma ou nação ou língua não é grande.

Se o Brasil não pode ser grande PORQUE não pode servir a todos, porque existe uma miserável e empobrecedora e enxovalhante visão regressiva, conservadora de privilégios, então essa língua portuguesa no Brasil (que nem é mais portuguesa, apesar do que desejou Houaiss, pois é agora composta das percepções-de-mundo dos índios americanos, dos brancos europeus, dos negros africanos e dos amarelos asiáticos) é diminuta, em razão do encolhimento de cabeças implantada pelas técnicas de tortura das elites brasileiras, sobre si mesmas e sobre o povo.

Povo amarrado, elites amarradas, nação amarrada, língua amarrada, escrita amarrada.

Vitória, terça-feira, 24 de setembro de 2002.

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