quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017


Os Acertos da Santa Fé

 

                            No livro A Vida Íntima das Palavras (Origens e Curiosidades da Língua Portuguesa), São Paulo, Arx, 2002, o autor, Deonísio da Silva diz depreciativamente na página 163 que: “No decorrer da História, placentas de complexas reflexões envolveram o embrião, começando pelas afirmações teológicas que, na Idade Média, ousaram fixar o momento em que a alma era infundida no feto em formação, levando a Santa Sé, mediante documentos dogmáticos, a determinar que já na concepção existe o homem, ainda que em estado embrionário”.

                            E mais adiante, p. 164: “De outra parte, com a consolidação dos direitos da mulher, foi-lhe assegurado também o direito de dispor do próprio corpo, sendo soberana para decidir se continua ou interrompe uma gestação”.

                            Investiguemos essas duas posições.

                            O modelo mostrou nitidamente que a união do primeiro (= HOMEM, na Rede cognata, q.v. o artigo Rede e Grade Signalíticas, Livro 2) com o segundo (seria a mulher; mas isso não implica julgamento de valor) produz o terceiro, viável já na união. No caso mais amplo, da junção do homem com a mulher, forma-se o casamento, que é o terceiro viável, diferente de cada um em separado – ao casar se forma o par fundamental, que é um terceiro ente. Ao acoplar-se no óvulo o esperma, está se formando o espermatóvulo, o ovo-fecundado, que é o terceiro viável. JÁ É UM SER INDEPENDENTE, já começa a existir, e não depende mais nem de homem nem de mulher, é um organismo com caminho próprio, com trilha independente. Se a mulher irá sustentá-lo ou não é outra geo-história; se morrerá em qualquer acidente é outro caso. ESTÁ VIVO! Indubitavelmente vivo.

                            Quanto a ter ou não ter uma alma a questão é diversa, também. Mas, onde e quando a alma se inseriria? Que propriedade mágica é essa que ao primeiro choro a alma viria a se inserir? Se pensarmos que a micro-alma deve se inserir no ovo-fértil, no espermatóvulo, não seria igualmente esquisito e risível pensar que entra no bebê e vai crescendo? A alma deve ser, portanto, adimensional, porque senão ela deveria ter a conformação humana, também, e não de qualquer racional. Se segue que a alma, se existe, é adimensional e se insere no espermatóvulo mesmo, se acontece de fazê-lo. Não poderia ser diferente, nem em outro momento, pois este é um zero, um marco.

                            Concluímos que, de fato, já há ser na fusão, sendo ele necessariamente diferente do espermatozóide e do óvulo – é um terceiro, e já é ser pleno, conseqüentemente devendo ser protegido pelas leis humanas. Retirar o ovo fecundado é matar uma criatura plena de direitos, daí ser crime o aborto (às vezes com ocultação do cadáver).

                            A Santa Sé já estava certa na Idade Média.

                            Depois, se a mulher aborta, está matando um ser, por via dedutiva. Se o espermatóvulo é, desde a fecundação do óvulo pelo espermatozóide, um SER, PLENO, EM-SI, não pode ser violado sem punição legal. A mulher não é dono dele, como a mãe não é dona de uma criança fora de seu útero. Ela não pode matar o embrião, como o carcereiro não pode matar o prisioneiro que guarda. É apenas a guardiã e não lhe pode ser dada a liberdade de dispor de “seu” corpo, porque não é seu. Poderia pedir para cortar um braço, uma perna, as orelhas, o que fosse, porque essas partes são realmente suas, mas não o embrião, PORQUE ELE NÃO É SEU, pois não se pode ter a alma alheia.

                            Vê-se que a Santa Sé estava duplamente certa. Ela errou em tantas coisas, mas nisso estava perfeitamente certa. A opção de abortar é a opção de assassinar, o que pode ser feito para salvar a mãe (ou vice-versa, pode-se matar a mãe em estágio terminal de doença para salvar o filho), mas no fim é sempre assassinato, punível em lei, a menos que sancionado pelo Estado, que é o guardião temporal da Lei, enquanto for legítimo e não-opressivo.

                            O livro é muito bom, mas nisso errou.

                            Vitória, terça-feira, 29 de abril de 2003.

Nenhum comentário:

Postar um comentário