Os Acertos da Santa
Fé
No livro A Vida Íntima das Palavras (Origens e
Curiosidades da Língua Portuguesa), São Paulo, Arx, 2002, o autor, Deonísio da
Silva diz depreciativamente na página 163 que: “No decorrer da História,
placentas de complexas reflexões envolveram o embrião, começando pelas
afirmações teológicas que, na Idade Média, ousaram fixar o momento em que a
alma era infundida no feto em formação, levando a Santa Sé, mediante documentos
dogmáticos, a determinar que já na concepção existe o homem, ainda que em
estado embrionário”.
E mais adiante, p.
164: “De outra parte, com a consolidação dos direitos da mulher, foi-lhe
assegurado também o direito de dispor do próprio corpo, sendo soberana para
decidir se continua ou interrompe uma gestação”.
Investiguemos essas
duas posições.
O modelo mostrou
nitidamente que a união do primeiro (= HOMEM, na Rede cognata, q.v. o artigo Rede e Grade Signalíticas, Livro 2) com
o segundo (seria a mulher; mas isso não implica julgamento de valor) produz o
terceiro, viável já na união. No caso mais amplo, da junção do homem com a
mulher, forma-se o casamento, que é o terceiro viável, diferente de cada um em
separado – ao casar se forma o par fundamental, que é um terceiro ente. Ao
acoplar-se no óvulo o esperma, está se formando o espermatóvulo, o
ovo-fecundado, que é o terceiro viável. JÁ É UM SER INDEPENDENTE, já começa a
existir, e não depende mais nem de homem nem de mulher, é um organismo com
caminho próprio, com trilha independente. Se a mulher irá sustentá-lo ou não é
outra geo-história; se morrerá em qualquer acidente é outro caso. ESTÁ VIVO!
Indubitavelmente vivo.
Quanto a ter ou não
ter uma alma a questão é diversa, também. Mas, onde e quando a alma se
inseriria? Que propriedade mágica é essa que ao primeiro choro a alma viria a
se inserir? Se pensarmos que a micro-alma deve se inserir no ovo-fértil, no
espermatóvulo, não seria igualmente esquisito e risível pensar que entra no
bebê e vai crescendo? A alma deve ser, portanto, adimensional, porque senão ela
deveria ter a conformação humana, também, e não de qualquer racional. Se segue
que a alma, se existe, é adimensional e se insere no espermatóvulo mesmo, se
acontece de fazê-lo. Não poderia ser diferente, nem em outro momento, pois este
é um zero, um marco.
Concluímos que, de
fato, já há ser na fusão, sendo ele necessariamente diferente do espermatozóide
e do óvulo – é um terceiro, e já é ser pleno, conseqüentemente devendo ser
protegido pelas leis humanas. Retirar o ovo fecundado é matar uma criatura plena
de direitos, daí ser crime o aborto (às vezes com ocultação do cadáver).
A Santa Sé já estava
certa na Idade Média.
Depois, se a mulher
aborta, está matando um ser, por via dedutiva. Se o espermatóvulo é, desde a
fecundação do óvulo pelo espermatozóide, um SER, PLENO, EM-SI, não pode ser
violado sem punição legal. A mulher não é dono dele, como a mãe não é dona de
uma criança fora de seu útero. Ela não pode matar o embrião, como o carcereiro
não pode matar o prisioneiro que guarda. É apenas a guardiã e não lhe pode ser
dada a liberdade de dispor de “seu” corpo, porque não é seu. Poderia pedir para
cortar um braço, uma perna, as orelhas, o que fosse, porque essas partes são
realmente suas, mas não o embrião, PORQUE ELE NÃO É SEU, pois não se pode ter a
alma alheia.
Vê-se que a Santa Sé
estava duplamente certa. Ela errou em tantas coisas, mas nisso estava
perfeitamente certa. A opção de abortar é a opção de assassinar, o que pode ser
feito para salvar a mãe (ou vice-versa, pode-se matar a mãe em estágio terminal
de doença para salvar o filho), mas no fim é sempre assassinato, punível em
lei, a menos que sancionado pelo Estado, que é o guardião temporal da Lei,
enquanto for legítimo e não-opressivo.
O livro é muito bom,
mas nisso errou.
Vitória, terça-feira,
29 de abril de 2003.
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