Receitas para Matar
Dona Maria trabalhou
conosco, como empregada doméstica. Sinto-me agradecido a ela, porque cuidou da
minha filha e do meu filho em minhas ausências, mas um dia brigamos e ela saiu,
tendo adoecido mais adiante.
Certo dia logo no
começo ela estava descendo ou subindo o elevador do Ed. Ilha de Bonaire, Jardim
da Penha, quando um senhor, já idoso, da cobertura, disse a ela que seria bom
ter dois elevadores para os empregados transitarem somente por um deles. Quando
ela me contou mostrei a ela as passagens da constituição que proíbem
discriminação de raça, social, sexual, etc. Ela mostrou-lhe o livrinho e ele
ficou daí em diante ainda mais aborrecido.
Tempos depois,
vários anos, ele teve um derrame, creio, e agora, na terça-feira de carnaval de
2003, morreu, notícia que soube pela Dona Ângela, a mulher da limpeza que
cruzou comigo na rua, pois saímos daquele prédio. Pedindo notícias da Dona
Maria, que está ainda doente, ela disse para eu repassar a ela o aviso do
falecimento daquele senhor. Creio que a Dona Maria ficou muito magoada, mas
mais que isso, desejando a morte dele. Nós, seres humanos, temos isso.
Naturalmente é bem conhecido da psicologia que filhos e filhas desejam a morte
de pais e mães, e uns dos outros, e de amigos, e assim também todos os seres
humanos. A construção de frases dentro de nós é terrível – poder ao mesmo tempo
formidável e pavoroso, pois qualquer coisinha já nos faz ter tais desejos.
Acresce que Dona
Maria, católica que é, descendente de negros e índios, é praticante de macumbas
e pembas, e já que a Dona Ângela frisou tanto para eu dar o recado imagino o
que pode ter havido, em termos de imaginação.
Na realidade a
construção de armas, dos revólveres às novas superbombas americanas, tudo é a
confecção de receitas para matar. Receitas reais e receitas virtuais.
Construção de processos e de objetos, e de sujeitos, de programas e máquinas,
numa longa trajetória dessa vontade estranha que os seres humanos têm. É tudo
tão espantoso!
Vitória,
quarta-feira, 19 de março de 2003.
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