terça-feira, 7 de fevereiro de 2017


Receitas para Matar

 

                            Dona Maria trabalhou conosco, como empregada doméstica. Sinto-me agradecido a ela, porque cuidou da minha filha e do meu filho em minhas ausências, mas um dia brigamos e ela saiu, tendo adoecido mais adiante.

                            Certo dia logo no começo ela estava descendo ou subindo o elevador do Ed. Ilha de Bonaire, Jardim da Penha, quando um senhor, já idoso, da cobertura, disse a ela que seria bom ter dois elevadores para os empregados transitarem somente por um deles. Quando ela me contou mostrei a ela as passagens da constituição que proíbem discriminação de raça, social, sexual, etc. Ela mostrou-lhe o livrinho e ele ficou daí em diante ainda mais aborrecido.

                            Tempos depois, vários anos, ele teve um derrame, creio, e agora, na terça-feira de carnaval de 2003, morreu, notícia que soube pela Dona Ângela, a mulher da limpeza que cruzou comigo na rua, pois saímos daquele prédio. Pedindo notícias da Dona Maria, que está ainda doente, ela disse para eu repassar a ela o aviso do falecimento daquele senhor. Creio que a Dona Maria ficou muito magoada, mas mais que isso, desejando a morte dele. Nós, seres humanos, temos isso. Naturalmente é bem conhecido da psicologia que filhos e filhas desejam a morte de pais e mães, e uns dos outros, e de amigos, e assim também todos os seres humanos. A construção de frases dentro de nós é terrível – poder ao mesmo tempo formidável e pavoroso, pois qualquer coisinha já nos faz ter tais desejos.

                            Acresce que Dona Maria, católica que é, descendente de negros e índios, é praticante de macumbas e pembas, e já que a Dona Ângela frisou tanto para eu dar o recado imagino o que pode ter havido, em termos de imaginação.

                            Na realidade a construção de armas, dos revólveres às novas superbombas americanas, tudo é a confecção de receitas para matar. Receitas reais e receitas virtuais. Construção de processos e de objetos, e de sujeitos, de programas e máquinas, numa longa trajetória dessa vontade estranha que os seres humanos têm. É tudo tão espantoso!

                            Vitória, quarta-feira, 19 de março de 2003.

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