terça-feira, 3 de janeiro de 2017


Mesmo que Tudo dê Certo

 

                            Depois de desfiar todas as fictícias razões indutivas pelas quais, presumivelmente, tudo daria errado nas nações atrasadas do mundo atual, Paul Kennedy diz em seu livro, Preparando para o Século XXI, Rio de Janeiro, Campus, 1993, p. 24: “Mesmo, porém, que exista comida, seria possível dar a esses bilhões de jovens saúde e educação decentes e, posteriormente, criar novos empregos no ritmo necessário para evitar o desemprego em massa e a agitação social? O fenômeno é mais ou menos parecido com aquela multidão de 100.000 vagabundos que vagavam pelas ruas de Paris na década de 1780, mas os números de hoje são fantasticamente maiores. No momento, a força de trabalho nos países em desenvolvimento é de cerca de 1,76 bilhão, mas aumentará para mais de 3,1 bilhão em 2025 – o que significa a necessidade de 38 a 40 milhões de novos empregos todos os anos”, itálico no original.               

                            Ou seja, mesmo que absolutamente tudo dê certo, ainda assim dará errado; e se porventura desse certo nessa parte que falta, a chance maior seria de descarrilar. É como o Amigo da Onça. Dois camaradas estão conversando. PRIMEIRO – fui caçar, acabaram as balas, deparei com uma onça. SEGUNDO – e aí? A onça te atacou? PRIMEIRO – foi mesmo, mas eu saí correndo na frente. SEGUNDO – e aí, ela te perseguiu? PRIMEIRO – sim, mas eu subi na árvore. SEGUNDO – e então, ela subiu também? PRIMEIRO – subiu, mas eu fui mais para cima, para os galhos finos. SEGUNDO – e ela foi atrás? PRIMEIRO – vem cá, você é meu amigo ou amigo da onça?

                            Que aconteceu com os 100 mil vagabundos que vagavam por Paris há 220 anos? Foram mortos? Não, não é? Fizeram a Revolução francesa logo em seguida, em 1789, daí a França mudou, tornou-se mais produtiva, distributivista, popular, democrática, e alimentou não uma centena de milhar, mas dezenas de milhões. PORQUE a França encontrou um projeto que é seu, que ela ama e pelo qual luta com fervor.

                            Assim também acontecerá com os povos asiáticos, os africanos, os sul-americanos, todos os povos atualmente atrasados da Terra, quando encontrarem um modo seu, conveniente às suas expectativas de vida, às suas esperanças e crenças, às suas percepções de mundo. Não 40 a 50 milhões de empregos por ano, mas centenas de milhões serão criados, PARA FAZER COISAS LOCAIS e não de interesse dos países dominantes e centrais. Quando as pessoas estejam lutando POR SEUS SONHOS elas criarão centenas de milhões de empregos, até faltará gente para tanta coisa por fazer.

                            É possível não só dar comida, saúde, educação, diversão, cultura, proteção ambiental, computação avançada, tecnociência de ponta, superconhecimento, como numerosíssimas coisas com as quais sequer sonhamos porque estamos sempre voltados etnocentradamente para os valores europeus exclusivistas. Esses povos criarão tecnociência e Conhecimento geral tropical e retardatário, que não visarão mais a repetição e cópia do que interessa aos europeus e seus replicadores americanos do norte.

                            Tente imaginar QUANTAS INFINDÁVEIS COISAS será preciso fazer e re-fazer ao modo próprio desses povos! Chega a dar um calor gostoso dentro da gente.

                            Porque o que não nos faz falta alguma é a desconfiança dos centrais, a falta de fé em nossas capacidades, em nossa engenhosidade, em nossa capacidade de inventar um destino NOSSO, um futuro independente. Isso eles têm de sobra, falta de confiança, falta de crença em nossas capacidades. Descrêem de nós, suspeitam, duvidam de nossas forças. Estão sempre arranjando um empecilho, um obstáculo qualquer, um impedimento, um estorvo, uma barreira.

                            SE tudo der certo, ainda assim, dizem eles, dará errado.

                            Homens e mulheres de pouca fé! Se Cristo tivesse tido neles a falta de confiança que eles têm nos outros, estariam todos mortos, agora, não seriam essas centenas de milhões da Europa e dos EUA, da Rússia e dos países cristãos todos, mas apenas algumas dezenas de milhões, encurraladas e dominadas por estrangeiros, que neles não veriam nenhuma promessa de futuro decente.

                            Na Veja desta semana diz-se que a China conseguiu transformar em classe média bem alimentada e vestida 700 dos seus 1.300 milhões de habitantes. Sem falar que os outros 600 milhões, morando no campo, também não estão passando fome. Não arranjaram 40 milhões de empregos, mas (contando metade da população como PEA, população economicamente ativa), 600 a 700 milhões.

                            Vitória, terça-feira, 29 de outubro de 2002.

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