domingo, 15 de janeiro de 2017


Interpretando Marx

 

                            No livro Dialética (Teoria Práxis), Porto Alegre, Globo, São Paulo, USP, 1983, de Gerd A. Borheim, p. 213 e 214, há várias passagens, que comentarei agoraqui.

1)      “De resto, há textos de Marx bastante claros nesse sentido. Não só porque ele mesmo reconhecia ser partícipe de uma tradição, mas também porque o próprio Marx sugere a dependência essencial do objeto em relação ao sujeito”, todos os coloridos meus. Se isso se dá é porque estamos além do nível Físico/Químico, para além também do Biológico/p.2, já adiantados no nível Psicológico/p.3 (indivíduos, famílias, grupos, empresas, municípios/cidades, estados, nações e mundo, na fase de planetarização, enquanto na época de Marx estavam ainda nas convulsões nacionalizantes). É porisso, estamos na oitava sub-fase do nível Psicológico/p.3. Os animais estão muito mais ligados aos objetos e dependentes deles que nós.
E os objetos, naturalmente, são inteiramente dependentes uns dos outros, não têm nenhuma liberdade intrínseca. O Objeto geral não depende de nós, propriamente, porque o que poderia um ser humano em relação à vastidão do universo? Pouco podemos e mesmo assim apenas na Terra, à nossa volta. Tomando a humanidade inteira, aí sim, há alguma dependência, mas não demais, também. Nem há dependência essencial do objeto em relação a nós, nem nossa em relação ao objeto.

2)     “Assim, quando faz uma observação à margem do texto dos manuscritos de 1844: ‘Só posso comportar-me praticamente, de modo humano, em relação à coisa, se a coisa se comportar humanamente em relação ao homem’”. Eu, sem ter lido este trecho senão hoje, vinha pensando que todos os objetos que produzimos foram humanizados, foram distintamente produzidos para serem humanos também, pois embora objetos são racionais, ainda que coisas. Ou seja, nós humanizamos o mundo em zilhões de objetos produzidorganizados.

3)     O objeto deve comportar-se humanamente ao que o homem pensa e sente, ao que ele faz; o humano só é humano pelo objeto, mas no processo de humanização ele humaniza o próprio objeto, e nesse sentido o objeto passa a encontrar no homem a sua medida”. Houve, é claro, humanização da cafeteira, que era matéria e energia brutas, não humanizadas, e tornaram-se num degrau superior coisa racionalizada, quer dizer, FORAM MEDIDAS, metrizadas, metrificadas pelo ser humano, padronizadas. Mas o ser humano também encontra no objeto a sua medida – não há, OBJETIVAMENTE falando, nada que esteja além dos objetos produzidos, porque não podemos dar provas aos outros senão pela produçãorganização dos objetos, inclusive da fala. É claro que, dentro de nós sabemos que há coisas que não foram objetivadas, são subjetivas, só nossas, delas não podendo nenhum de nós dar qualquer prova. Existencialistamente falando só temos como provar os objetos; roupas, paralelepípedos, pentes, disquetes – todas essas coisas nos medem, nos dimensionalizam enquanto humanidade.

4)     “Como elucidar, porém, a medida subjetiva do objeto? ‘Pensar e ser são em verdade distintos, mas ao mesmo tempo estão em unidade recíproca’, diz o citado texto de Marx”. Veja a importância fundamentalizante de uma passagem assim. Observe que não é só unidade do par polar oposto/complementar, mas que essa unidade é RECÍPROCA, um lado depende do outro para existir. Então, sujeito e objeto estão em UNIDADE RECÍPROCA, um fecunda o outro, sendo inseparáveis. Ora, quando deixar de existir o objeto é porque deixou de existir o sujeito, ou, dizendo de outra forma, os arqueólogos encontrarem os objetos é como encontrarem os sujeitos que os produziram e organizaram. De outro lado, não achando objetos alienígenas equivale a dizer que não há alienígenas (pelo menos até que os objetos apareçam; daí que os buscadores de UFO’s ou OVNI’s deveriam caçar objetos, pois apresentá-los seria o equivalente a apresentar os sujeitos. Não é necessário mostrar os marcianos, só os objetos feitos por eles).

5)     “O que funda essa unidade: o ser ou o pensar? De certo modo, nem um nem outro; em Marx já não existe a pureza da etapa final da metafísica, quando o ser se resolvia simplesmente (...): ‘O homem se apropria de sua essência plurifacetada de modo plurifacetado, como homem total’”. Havendo divisões entre homens e mulheres, entre ricos e pobres, entre raças, entre velhos e moços, entre fazeres, QUAISQUER DIVISÕES, se segue que NÃO HÁ SER HUMANO TOTAL, e daí que o ser humano não é plurifacetado, ele não se apropriou de sua essência ou substância inteira, toda. É parcial, não é integral, não atingiu o cume, o ápice de sua dignidade.

6)     “Assim é todo o comportamento humano que entra em cena. Contudo, há um privilégio do sensível; pois como já vimos em análises anteriores, pelo sensível, pelo corpo, o homem se faz mundo; pelo objeto sensível estabelece-se a conaturalidade entre homem e mundo, visto que o sensível é objetivo. E então parece que se poderia dizer que o sujeito encontra a sua medida no objeto”. Não apenas pelo corpo, pela mente também. Mas veja o que é fundamental: não se esqueça, logo ali de trás, que há a UNIDADE RECÍPROCA, essa CO-NATURALIDADE de que ele fala agora, entre humanos e seus objetos, entre homens e mulheres, entre filhos e filhas e pais e mães, entre todos que parecem estar somente opostos e são também complementares, entre os que se dizem inimigos, por exemplo. E veja também que grandeza: de dizer que os objetos que nos cercam SÃO TAMBÉM SENSÍVEIS e de mesma sensibilidade que nós comportamos. O tapete é conatural conosco, ele é sensível também, ele é CÚMPLICE de nossa humanidade. A favela nos denuncia de nossa baixa humanidade. Porisso ao descobrir objetos de um naufrágio, somos remetidos à conaturalidade daqueles viventes, em seu espaço tempo conatural. Naqueles objetos de uma casa que ficou soterrada sob neve dois milênios encontramos a medida da sensibilidade daqueles seres. Por aí se vê a emoção que toma os arqueólogos quando descobrem os objetos, pois estão tocando as almas que ali estiveram. E o mesmo se dá com as palavras que lemos de cinco mil anos passados ou de duas semanas atrás.

Você bem pode imaginar com que emoção sempre renovada leio Marx, pelo tanto que emana ou sai dele, embora eu discorde numerosas vezes, como mostrei. Um pouco menos com Lênin, porque ele é voltado quase exclusivamente para a socioeconomia, enquanto Marx visita grandes praias filosóficas e ideológicas.

Altamiro me vendeu as obras completas de Lênin (que ainda não li), mas eu gostaria mesmo é de poder ler Marx (roubaram dois dos seis volumes de O Capital, de forma que estou impedido de ler as partes que sobraram), especialmente no original, que estou longe de conhecer minimamente. Mas mesmo em português seria ótimo, porque as idéias de fundo estão lá. Quem disse que Marx está morto e enterrado é um idiota completo, que não respeita o pensamento se ele não tiver uma cor vizinha da sua.

Assim, pense em quantas coisas estão enterradas nessa imensa cidade que é Marx, à espera de competentes visitantes, profissionais ou não, das investigações do saber.

Vitória, quarta-feira, 11 de dezembro de 2002.

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