quarta-feira, 4 de janeiro de 2017


Deus lhe dê em Dobro

 

                            Num país como o Brasil, em que as elites dão o exemplo nefasto do não-trabalho ou do ócio mais ostensivo, o povo miserável tornou-se mendigo, pedinte sem a menor vergonha. Pedem tudo a todo instante em todo lugar. É moda no país, porque as elites também esmolam o que não é delas ao governo, que toma sem o mínimo de embaraço os tributos da população, escorchando-a o quanto pode.

                            Então, os mendigos criaram fórmulas. Os pequenos são ensinados a dizer uma cantilena nos ônibus (“sou pobre, mas é melhor pedir que roubar; peço por minha mãe, meus irmãos pequenos”; etc. – valeria a pena gravar e fazer livros da variabilidade). Há alguns que pedem em nome da AIDS, de ser uma chaga social, os remédios caros, os preconceituosos que não dão emprego.   

                            E, é claro, quase todos dizem “Deus lhe dê em dobro”.

                            Há aí uma ironia confrontadora, porque as pessoas dão 50 centavos, então Deus é obrigado a devolver um real. Ou é fórmula, repetição, chavão, pois o nome de Deus não vale mais nada na boca dessa gente, perante o mandamento “Não chamarás o seu Santo Nome em vão”. Ou há a esperança forçadora de que a pessoa dê mais, para correspondentemente Deus dar mais também. Para esperar receber dez reais a pessoa deveria dar cinco.

                            Outros dizem: “Deus lhe pague”, de modo que estão acumulando uma dívida enorme em nome de Deus. Ou “Deus o recompense”, ou o que for.

                            Ninguém fez ainda um estudo completo sobre a morbidez socioeconômica que é a mendicância, de como a podridão que é esse pedir contínuo (que, como disse Luís Gonzaga, pai) vicia o cidadão. Introduz-se com a mendicância permitida, tolerada, até estimulada, a complacência com a miséria, com a folga dos folgados, com o excesso de espaço dos espaçosos. Não trabalham os ricos nem os miseráveis, trabalham os médios-altos e os médios-baixos, os pobres. Os extremos vivem, de um modo ou de outro, da mendicância.

                            O que é péssimo para qualquer nação que se preze.

                            Vitória, quinta-feira, 07 de novembro de 2002.

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