Proibida a Entrada de
Gente Estanha
Resendinho foi
mandado pela sua companhia multinacional para “o mundo”, os EUA, aonde iria se
tornar civilizado e passar de presa a predador. Ninguém falava esse tipo de
coisa, mas todo mundo entendia que era uma oportunidade única, a de ser
agregado à verdadeira civilização, sair do subúrbio, migrar do quintal, dar uma
banana. Resendinho, com sua falsa consciência revolucionária petista, era um
adesista da cultura ou nação americana, um durex mesmo.
O nome dele vinha de
existir um sênior, um Resende pai. O nome dos dois era Filogomenes Resende, só
que ele era o Júnior, o que veio depois e teve de herdar o nome horroroso. Para
não ser chamado de Filó, porque ninguém iria falar esse nome comprido,
Resendinho se apresentava como Resende Jr., que ficou sendo Resendinho, o
pequeno Resende, por vezes chamado Resed, “e aí, Resed? ” Como ele trabalhava
numa multinacional americana onde se falava freqüentemente o inglês nas esferas
mais altas, passaram a dizer à boca pequena RESET (restaurar ou reinicializar
no inglês da informática). Não teve jeito, pulou da frigideira, caiu no fogo.
Então ele exigiu ser chamado de Resendinho, e era essa a origem.
Lá foi Resendinho a
um daqueles bairros chiques das periferias das cidades americanas, com casas
sem cerca com que todos sonhamos, para ficar três anos em treinamento e voltar
transformado em gente.
Instalada a família
a vida era só felicidade nos primeiros seis meses. O que era a civilização, não
é mesmo? Terrorismo? Isso era mais é propaganda de televisão, porque na prática
mesmo eles se sentiam no paraíso. As crianças iam para a escola, voltavam e iam
brincar. O ônibus pegava e deixava na porta, elas iam brincar nos acres e acres
da comunidade. Lá dizem acre, que são quatro mil metros quadrados, e não o
nosso hectare, dez mil metros quadrados. Eram acres e acres de florestas e as
crianças eram instruídas a não ultrapassar os limites.
Resendinho vivia
ocupado, Marcela vivia nos shoppings centers, que eram de arrasar, davam de dez
nos daqui. Celinha vivia ligando para as amigas e a mãe e irmãs para dizer que
vivia nos shoppings centers, que eram de arrasar, davam de dez nos daqui.
Resendinho, coitado, trabalhava até demais, querendo não apenas cumprir as
metas dos colegas americanos, mas ultrapassá-las, com o objetivo evidente de
obter as graças e os favores dos patrões. Ganhava em dólares, seu salário
saltou de 100 mil reais para 80 mil DÓLARES, como Resendinho fazia questão de
dizer modestamente, é claro, aos amigos, sempre que podia.
Um dia Resendinho
quebrou a perna e por lá eles são muito rigorosos tanto com o trabalho quanto
com as folgas obrigatórias, instruídas pelos médicos. Resendinho foi obrigado a
contragosto a ficar em casa e isso significava ter muito tempo livre, o que o
deixava angustiado. Tome TV paga, filmes de locadora, pizzas, Resendinho
engordava. Celinha não parava em casa, era só comprando, comprando, comprando
para dar coisas às amigas e parentas quanto voltasse. Celinha vivia nos
shoppings centers, que eram de arrasar, davam de dez nos daqui. Resendinho
engordava.
Aborrecido de só
engordar, Resendinho começou a dar voltas nas redondezas, a ver como tudo era
tão perfeito. Os gramados, viçosos a não mais poder, brilhantes, pareciam de
plástico. As flores, poucas, sempre luminosas em suas cores estudadas. As
árvores pareciam fabricadas, de tão perfeitas e vigorosas. Discretamente
Resendinho tirou uma lasca com um canivete. Bateu fotos, procurou vizinhos para
conversar e não encontrou, porque os maridos estavam fora trabalhando, os
filhos estudando de manhã e de tarde em grupos ou em qualquer atividade, e as
mulheres fazendo compras nos shoppings centers, que eram de arrasar, davam de
dez nos daqui.
Resendinho estava
sozinho no mundo perfeito. Empregadas não havia, americanos não têm disso,
custa muito caro, não dá para pagar. Se tivesse alguma, Resendinho pensou com
sua consciência brasileira, até talvez desse para faturar, desde que não fosse
ser denunciado por assédio. Mas não havia uma sequer. Só os ricos tinham
empregadas. Só os atores e atrizes de cinema. Droga, Resendinho ficou mordido
de raiva. Droga. Ele estava infeliz de não ter ninguém com que conversar.
Então, decidiu ir
mais longe.
Resendinho era
aventureiro brasileiro, gostava de se aventurar; e foi, foi longe, de fato foi.
Andou bastante e chegou até as beiradas, os limites do terreno coletivo. Fora
das estradas que entravam e saíam, todas asfaltadas, todas com ciclovias à
esquerda e à direita, todas perfeitíssimas em sua infalibilidade, Resendinho
encontrou uma placa: PROIBIDA A ENTRADA DE GENTE ESTRANHA. Em inglês, é claro,
que a essa altura Resendinho falava e escrevia com mais fluência e correção que
os nativos. Ah! - são cuidados para evitar os penetras, ele pensou. E voltou
para casa.
E assim, dia após
dia, Resendinho foi se aventurando e encontrando placas semelhantes em todo o
circuito, sempre os mesmos dizeres, sempre voltadas para fora. Resendinho foi
ficando revoltado, de justamente os americanos, que fazem propaganda de sua
democracia, estarem rodeados de tantas proibições. Resendinho se sentiu
enjaulado, guiado pelo caos brasileiro a que estava acostumado. Isso se tanta
opressiva vigilância pesando sobre os cidadãos o incomodava. Resendinho
arrancou uma placa, depois duas, depois cinco, depois todas. Ninguém sabia de
nada, porque todos estavam fora, as casas ficavam desertas de dia, de noite
todo mundo assistia TV ou dormia. De pirraça queimou tudo.
Voltou a trabalhar.
Um dia a polícia
esteve no bairro.
Uma pessoa estranha
tinha sido vista, depois várias, a polícia voltava sempre. Eram pessoas MUITO
estranhas, esquisitíssimas. Não eram deste mundo. As coisas mais extraordinárias
aconteceram quando os alienígenas começaram a invadir o antigo bairro
paradisíaco, agora infernal. Descobriram as placas queimadas, descobriam as
digitais, descobriram o DNA, descobriram Resendinho. O caso é que as placas não
eram apenas avisos, faziam parte de um sistema de proteção, muito caro e muito
efetivo, parte da luta dos Estados Unidos contra os aliens, que são os
estrangeiros, os não-admitidos, os estranhos. As placas formavam um circuito
por debaixo da terra.
Para poupá-lo dos
detalhes direi apenas que a empresa deportou Resendinho e o demitiu; a mulher
pulou fora do barco que balançava e levou os filhos, o carro, a casa, a mobília
e metade da poupança. Posto para fora, Resendinho, engenheiro que era, não tendo
carta de recomendação - porque passou como indisciplinado, rebelde despedido
por multinacional – foi viver de bicos e vive fazendo bico até hoje. As pessoas
zombam dele, cantando a música “é proibido proibir”, ou fazem o gesto de estar
arrancando placa. Celinha não deu nem um dos presentes que trouxe, pelo
contrário, vendeu, porque não tinha mais o salário de 80 mil DÓLARES de
Resendinho para sustentá-la.
Só mais tarde
Resendinho compreendeu que a perfeição é um preço a pagar, em termos de
comportamentos e aceitações. Resendinho, tendo perdido a chance de se tornar
outro, agora está mais revoltado e revolucionário do que nunca. Esqueceu de
dizer que pretendia largar tudo para trás e viver de saudades.
Resendinho está
devendo no meu armazém há mais de dois anos e se eu pego o safado vou esfolá-lo
direitinho, que a conta é alta. Se você o vir por aí, me conta que eu te pago
duas grades, bico seco.
Vitória,
quarta-feira, 29 de setembro de 2004.
Nenhum comentário:
Postar um comentário