sábado, 28 de outubro de 2017


Dedo Duro

 

                            Manoel entrou na sala, sentou-se na cadeira para a consulta. Não disse nada. Como demonstração colocou o indicador no tampo da mesa e literalmente afundou-o vários centímetros na madeira, vazando o tampo; levou o dedo para lá e para cá várias vezes, escavando uma trilha caótica. Quase caí para trás, de puro susto. Claro, eu nunca tinha visto isso, e aposto que nem você.

                            Fiquei bem uns cinco minutos sem falar nada. Nem ele.

                            Finalmente ele me disse: <Doutor, me ajude>.

                            Fiquei calado mais alguns minutos, até me recobrar.

                            <Ô, Manoel, quem mais sabe disso?>

                            <Ninguém, doutor, o senhor é o primeiro. Escondi isso muitos anos, ninguém ficou sabendo.>

                            Peguei o dedo com todo cuidado, evitando tocar a ponta, mas ele assegurou que era só quando ele apertava.

                            Convenci-o a ir à universidade, onde os físicos se puseram a estudar o problema, pois muitas questões vinham à tona. Como se dava a transição entre a parte dura e a mole do dedo? Como se resolviam os problemas de coesão molecular? Os biólogos foram chamados. Como se mantinha a circulação? Que gênero de células seriam aquelas? As questões iam se sucedendo, Manoel passou três meses indo à e vindo da universidade, tudo pago, já que ele era baixo burocrata. Foi acertado com seus superiores que ele seria abonado dos dias faltados. O que era um divertimento no início foi se tornando cada vez mais um aborrecimento, Manoel foi ficando cansado de tanta celebridade. Se no início ficou feliz de ser notado na rua, para os lados do fim ficava furioso quando era apontado: <Ih, olha lá o dedo duro!> Com o passar dos meses Manoel foi ficando cada vez mais mal-humorado e um dia não apareceu mais. Procurado no serviço não o encontraram, ele tinha fugido sem deixar nem pedido de dispensa. Sumiu. Voltou a se esconder.

                            Agora todo mundo sabe que existe dedo-duro, pelo menos um, que se apresentou. E se existirem outros, que vivem na clandestinidade, sem ninguém saber? E se forem vários e vários os dedos-duros, até perto de você? E se algum te tocar? Que providências tomar para evitar contato com o dedo-duro? Pois ele pode te causar bastante mal. Como aparecem os dedos-duros? Os que implica que qualquer um se torne dedo-duro? Desde então me inquieto com essas perguntas.

                            Vitória, sexta-feira, 01 de outubro de 2004.

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