domingo, 29 de outubro de 2017


O Rapaz da Manutenção

 

                            Um dia eu estava passando na rua e tinha um bichinho estranho na calçada. Abaixei e peguei nele, porque ninguém estava reparando mesmo. Peguei pra mim. Perguntei em volta, mas o povo fazia que nem via, a indiferença das cidades é terrível, muito deprimente. Não é só em Nova Iorque que ninguém faz nada, em toda parte é a mesma coisa, menos nas cidades muito pequenas, em que todos perguntam. Aí ficamos incomodados exatamente por isso. A humanidade nunca está satisfeita.

                            Era uma criaturinha estranha mesmo, coisa de outro mundo e fiquei com ela dois meses, até que apareceu um povo dizendo que era deles e até apresentaram documentos. Eu dei, fazer o quê, já tinha me acostumado. Bicho é uma bosta, mesmo, a gente se apega, pega amor pela coisa e depois rebenta algo dentro da gente. Pouco tempo e já é assim. Nunca tinha visto animal feito o Geraldo (era um sujeito esquisitão que era meu amigo, coloquei o nome no animal, ele fez desfeita; ah, bom, ele não ficou sabendo mesmo!). Era mansinho comigo, mas creio que fazia medo nos cachorros e gatos da redondeza porque não sobrou um, fugiram todos. Sei lá, sumiram, acho que tinham medo do bichinho e evitavam se aproximar.

                            Depois, um sábado eu tava indo pro futebol e vi na parede de um prédio uma coisa pontuda aparecendo, fiquei um tempão olhando, o pessoal passava e me olhava de banda. Que que é, endoidaram? Fiquei mirando e admirando, olhei com atenção, peguei, passei a mão, que troço esquisito saindo assim da parede – quem foi o burro que fez essa burrice? Quem vai construir uma parede com uma coisa doida dessa enfiada? Fiquei cismado duas semanas, mas no sábado seguinte não pude ir pra partida, dei uma topada, tive até de dar ponto, acredita? No outro sábado não tava mais lá. Tiraram, é lógico, e fizeram o serviço bem feito, nem marca ficou. E olha que eu sou pedreiro, é difícil rebocar sem deixar marca, mas tava tudo certinho, olhei de perto. Que trabalho bem feito, ô xente!

                            Duma outra vez foi um globo parado no ar dentro de um bar. Chamei um companheiro. Que é isso? <Isso o quê? > Isso. <O quê, porra? > Isso aqui, caramba, esse troço, esse negócio aqui, merda. <Cê tá doido? > Vai dizer que você não tá vendo? <Não tô vendo porque não tem nada aí> Outros se juntaram no bate-boca, foi uma zona do cacete. Aglomerou, chamaram a polícia, fui parar no hospital, me deram remédio, faltei três dias no trabalho, também dei porrada pra caramba, me internaram, o patrão apareceu, foi assustador. Disseram que eu tinha enlouquecido. Eles que são cegos de não ver uma bolona assim bem paradinha no ar. Se tava ali bem nas fuças de todo mundo, como é que pode?

                            Daí, vez em quando acontecia uma coisa assim e eu comecei a pensar mesmo que tava zureta, doidinho de pedra. Fiquei com medo, pode acreditar. Começou a me dar uns calafrios, senti as pernas bambas, ai meu Deus, tô ficando doido, que será de mim, vou sair por aí falando doideira.

                            Até um dia que apareceram uns caras lá no meu barraco, pediram para entrar e começaram a conversar e aí eu fui ver que não tava doido não, é problema de manutenção do Programão. É que umas coisas falham. Não é problema de Deus, não senhor, o Plano é perfeito mesmo, são os materiais que não são muito confiáveis, exatamente por serem materiais e caóticos – em algum momento dá pau, entra em colapso. Aí é que nós entramos em ação, para corrigir esta ou aquela desconformidade. A maioria não vê nada, mas de vez em quando surge um ou outro que vê algo, escuta algo, cheira algo, toca algo, esse tipo de coisa. Se nós conseguimos corrigir a tempo a vida prossegue, mas há uns espíritos muito agudos e sensíveis que devem ser chamados, como você. Se você topar irá para treinamento num certo lugar e será um dos rapazes da manutenção, as coisas com defeito devem ser substituídas, está na garantia. Se não, infelizmente, será preciso dar outro jeito.

                            Vitória, sábado, 12 de março de 2005.

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