Mesmo que Tudo dê Certo
Depois
de desfiar todas as fictícias razões indutivas pelas quais, presumivelmente,
tudo daria errado nas nações atrasadas do mundo atual, Paul Kennedy diz em seu
livro, Preparando para o Século XXI, Rio de Janeiro, Campus, 1993, p.
24: “Mesmo, porém, que exista comida, seria possível dar a esses bilhões de
jovens saúde e educação decentes e, posteriormente, criar novos empregos no
ritmo necessário para evitar o desemprego em massa e a agitação social? O
fenômeno é mais ou menos parecido com aquela multidão de 100.000 vagabundos que
vagavam pelas ruas de Paris na década de 1780, mas os números de hoje são
fantasticamente maiores. No momento, a força de trabalho nos países em
desenvolvimento é de cerca de 1,76 bilhão, mas aumentará para mais de 3,1
bilhão em 2025 – o que significa a necessidade de 38 a 40 milhões de novos
empregos todos os anos”, itálico no original.
Ou
seja, mesmo que absolutamente tudo dê certo, ainda assim dará errado; e se
porventura desse certo nessa parte que falta, a chance maior seria de
descarrilar. É como o Amigo da Onça. Dois camaradas estão conversando. PRIMEIRO
– fui caçar, acabaram as balas, deparei com uma onça. SEGUNDO – e aí? A onça te
atacou? PRIMEIRO – foi mesmo, mas eu saí correndo na frente. SEGUNDO – e aí,
ela te perseguiu? PRIMEIRO – sim, mas eu subi na árvore. SEGUNDO – e então, ela
subiu também? PRIMEIRO – subiu, mas eu fui mais para cima, para os galhos
finos. SEGUNDO – e ela foi atrás? PRIMEIRO – vem cá, você é meu amigo ou amigo
da onça?
Que
aconteceu com os 100 mil vagabundos que vagavam por Paris há 220 anos? Foram
mortos? Não, não é? Fizeram a Revolução francesa logo em seguida, em 1789, daí a
França mudou, tornou-se mais produtiva, distributivista, popular, democrática,
e alimentou não uma centena de milhar, mas dezenas de milhões. PORQUE a França
encontrou um projeto que é seu, que ela ama e pelo qual luta com fervor.
Assim
também acontecerá com os povos asiáticos, os africanos, os sul-americanos,
todos os povos atualmente atrasados da Terra, quando encontrarem um modo seu,
conveniente às suas expectativas de vida, às suas esperanças e crenças, às suas
percepções de mundo. Não 40 a 50 milhões de empregos por ano, mas centenas de
milhões serão criados, PARA FAZER COISAS LOCAIS e não de interesse dos países
dominantes e centrais. Quando as pessoas estejam lutando POR SEUS SONHOS elas
criarão centenas de milhões de empregos, até faltará gente para tanta coisa por
fazer.
É
possível não só dar comida, saúde, educação, diversão, cultura, proteção
ambiental, computação avançada, tecnociência de ponta, superconhecimento, como
numerosíssimas coisas com as quais sequer sonhamos porque estamos sempre
voltados etnocentradamente para os valores europeus exclusivistas. Esses povos
criarão tecnociência e Conhecimento geral tropical e retardatário, que não
visarão mais a repetição e cópia do que interessa aos europeus e seus
replicadores americanos do norte.
Tente
imaginar QUANTAS INFINDÁVEIS COISAS será preciso fazer e re-fazer ao modo
próprio desses povos! Chega a dar um calor gostoso dentro da gente.
Porque
o que não nos faz falta alguma é a desconfiança dos centrais, a falta de fé em
nossas capacidades, em nossa engenhosidade, em nossa capacidade de inventar um
destino NOSSO, um futuro independente. Isso eles têm de sobra, falta de
confiança, falta de crença em nossas capacidades. Descrêem de nós, suspeitam,
duvidam de nossas forças. Estão sempre arranjando um empecilho, um obstáculo
qualquer, um impedimento, um estorvo, uma barreira.
SE
tudo der certo, ainda assim, dizem eles, dará errado.
Homens
e mulheres de pouca fé! Se Cristo tivesse tido neles a falta de confiança que
eles têm nos outros, estariam todos mortos, agora, não seriam essas centenas de
milhões da Europa e dos EUA, da Rússia e dos países cristãos todos, mas apenas
algumas dezenas de milhões, encurraladas e dominadas por estrangeiros, que
neles não veriam nenhuma promessa de futuro decente.
Na
Veja desta semana diz-se que a China conseguiu transformar em classe média bem
alimentada e vestida 700 dos seus 1.300 milhões de habitantes. Sem falar que os
outros 600 milhões, morando no campo, também não estão passando fome. Não
arranjaram 40 milhões de empregos, mas (contando metade da população como PEA,
população economicamente ativa), 600 a 700 milhões.
Vitória,
terça-feira, 29 de outubro de 2002.