quarta-feira, 31 de agosto de 2016


Tudoteca

 

Bateram na porta três vezes.

Fiquei deitado. Acordado às 04h31min, fiz questão de olhar.

Fiquei esperando.

Normalmente batem de novo quando demora só um pouco e fui juntando ira para quando batessem de novo.

Não bateram.

Fiquei esperando.

Nada.

Esperei mais.

Nada.

Droga. Droga. Droga.

04h38min.

Nem clareara ainda.

Desci as escadas e fui até a porta. Como vi muito filme, fiquei com medo de darem um tiro pelo olho mágico, paranóia de cinéfilo. Instalei um dispositivo, uma micro-câmera oculta que mostra a pessoa de vários ângulos, e adiantei uma espécie de tapa-olho no olho mágico, a partir de então olho cego-mágico. Ninguém atirou.

Quem se importaria comigo?

Droga, lá se foi a teoria da conspiração.

Pela câmera era um tampinha.

Tampinha mesmo.

Mesmo, mesmo, mesmo.

Um baixinho, um nanico, um nada-consta, uma titiquinha de nada, um nadica de nada, um tampinha.

05h02min

Ô bosta.

Quem vem à casa dos outros numa hora dessas?

Fiquei indignado.

Ainda se fosse um cara alto e fortão eu teria respeito, mas um bostinha daqueles, fiquei puto. Fervi em silêncio. Ao que a civilidade nos obriga. E o remelento nem para bater de novo para levar um esporro. Como é que as pessoas nos privam desses prazeres?

Abri a porta lentamente.

Vai ver tinha um grandão escondido.

Abri, passei pelo troco de gente e fui olhar pelas redondezas. Nada. Nada mesmo, tudo legal.

Que é isso, minha gente?

É nessas horas que temos vontade de ter casado ou pelo menos amigado. Não que ela fosse fazer qualquer coisa, a possibilidade maior seria a de me chutar pra ir ver. Bom, pelo menos pela companhia.

Voltei, fiquei diante do coisinha.

Tava de terno, ainda por cima. Não era uma criança, tinha os traços perfeitamente formados, como um adulto, só que tampinha. Era esquisito. Não era um anão, não tinhas pernas curtas e deformadas. Era como gente, só que tampinha. Tampinha mesmo. Como isso tava me incomodando!

- O que o senhor deseja?

Pior de tudo era ter de chamar de “senhor”. Um abuso.

- Bom dia, disse ele.

Não era voz fininha e distorcida, era voz, só que de tampinha.

- Bom dia, disse eu.

- Podemos entrar?

Pensei uns segundos, quase falei para ele ir passear.

- Podemos.

Entramos. O tampinha foi até a sala, diante da mesa de centro e erguendo-se de costas sentou na pontinha da poltrona, o tampinha era tampinha mesmo. Nunca tinha visto nada igual.

Não posso ficar falando tampinha, pensei, é falta de respeito.

Tampinha, tampinha, tampinha.

- O que o senhor deseja?

Ele não disse nada. Começou a tirar a roupa.

Cruz credo, que é isso? Cada doido que me aparece.

- Êpa, êpa!

Fiquei assustado. Que biruta, minha gente. Sangue de Jesus tem poder. Quando mais rezo mais assombração me aparece.

Ele continuou, imperturbável, e por baixo não existia um corpo como os humanos, com pelos e tudo, pelo menos o masculino. Tá, tinha braços e pernas, tinha até a conformação dos músculos, mas não tinha unhas, nem sexo, nem nada. Presumi que fosse homem porque usava terno. Bom, até tinha os trejeitos masculinos e o rosto parecido, mas não tinha pênis nem nada. É verdade que também não tinha peitos, não era mulher. O corpo possuía, todo ele, uma tonalidade ocre. A cabeça não tinha cabelos. Não tinha chifres de diabo, nem rabo, nem pé de bode, nada disso. Era um homem mínimo, mínimo mesmo, mal passava do meu umbigo. E olhe que não sou alto.

Para dar prova diretamente pegou um cinzeiro partido que eu havia colado com super-bonder e o fez derreter na palma da mão. O vidro pingou e queimou a mesa de centro. Depois restaurou o cinzeiro à sua forma original, de quando o comprei, só que mais bonito, com gotas de luz por dentro. Para quem pensar se tratar de alucinação é só ir lá em casa ver os buracos.

Bom, depois disso passei a ter certo respeito por aquele camaradinha, ele já me parecia até admirável.

Caramba, cocei minha barba.

Uau!

O que esse cara quer comigo?

Cocei de novo minha barba.

Por que comigo? Pega outro, ô meu!

Fiquei olhando pra ele bem uns dois minutos ou mais e o danadinho não falava uma palavra.

- O que o senhor deseja?

- Você tem de vir comigo.

Ele não me chamou de senhor, mas com aquelas capacidades (não duvidei nada haver outras) eu não estava tão preocupado assim com a descortesia.

- Ir pra onde?

- Ao Paraíso.

- Vou morrer? Por acaso sou merecedor?

- Não se trata disso, é como vocês chamam desde alguns milênios. Fica no meio do estado do Amazonas, sobre o equador, a meia distância entre o oceano Pacífico e Atlântico.

- O senhor vai me desculpar mas hoje mesmo tenho de trabalhar, sou funcionário público.

Fiquei olhando em volta pra ver se tinha jeito de pegar o celular pra pedir socorro. Olhei pra porta pra ver se ela estava aberta e eu podia correr, mas não estava, que porcaria.

- Esqueça o serviço.

- Bem que eu queria, falta muito pra aposentar.

- Eles não vão dar pela sua falta.

- Olhe aqui, posso não ser grandes coisas como trabalhador, mas assim também não, né?

Ele caminhou devagar para o meu lado, tocou no meu braço e de repente tudo sumiu, já estávamos em outro lugar; depois fiquei sabendo estar a milhares de quilômetros da minha casa. Eu só conseguia pensar naquele terninho dentro de casa, o que a arrumadeira iria pensar? Puta que o pariu, por que essas coisas só acontecem comigo? Quando lembrei de perguntar ele disse que o terninho desapareceria; de fato, se ele aparecesse nu na porta de casa eu nem teria aberto, teria chamado logo a polícia ou teria saído pela porta dos fundos.

Ai, ai.

Olhei em volta.

Era um poço enorme e quando digo enorme, era enorme mesmo, 16 quilômetros de boca em cima e dezenas de quilômetros de profundidade. Eram dois cilindros imensos em plena Amazônia. Chamavam de Duas Bocas. Se você já viu aqueles filmes de preparação de satélites vai ter idéia de quanto era limpo, assepsia completa mesmo, nem um cisquinho no ar. Que coisa!

Ai, ai.

Daqui a pouco seria hora de pegar o ônibus pra repartição.

Bom, pra resumir fiquei por lá três anos e meio.

Quando voltei não só ninguém tinha notado minha ausência como meu ponto estava assinado, minhas tarefas estavam feitas, a arrumadeira me cumprimentou como se tivesse vindo na manhã anterior, minhas contas estavam em dia (isso foi um bônus), o gerente não tinha reparado em três anos e meio sem movimentação da conta, etc.

Que coisa mais esquisita.

Não adiantava falar nada com as pessoas sobre ter passado três anos e meio assim e assado, todo mundo me olhava de banda, e não como se eu tivesse enlouquecido, era mais como se tivesse falado algo compreendido por elas. Eu falava horas e horas sobre aqueles anos e nada, nem uma piscadela.

É esquisito demais.

Por mais de dez anos falei e falei e falei com todo mundo sem qualquer resultado palpável, apenas a indiferença. A todo pretexto eu falava. Inútil. Podia falar minutos como horas, era como se fosse outro assunto. Uns piscavam e outros bocejavam, outros riam como se eu tivesse piada.

O tampinha tinha me passado a perna direitinho.

Claro, enquanto estive com ele e os bilhões como ele eu tinha o maior respeito, que só foi crescendo na medida da compreensão. Mas era um tampinha mesmo. Quanto mais os anos passavam, mais eu ficava irritado com a criaturinha.

Eu levantava da mesa e fazia discurso e nada, nem um susto, coisa nenhuma, ninguém estava ouvindo mesmo, até que um dia, já perdidas as esperanças a moça se aproximou de mim e disse ter acontecido o mesmo com ela. Quase caí de costas! Foi demais!

Lógico, casamos, tivemos filhos.

Acho que já estava tudo programado.

Nunca mais falei pra ninguém, fora ela e as crianças.

Antes de encontrá-la pensei que iria enlouquecer.

Parece que em cada geração alguns são escolhidos para ver e cada um dos escolhidos vê segundo sua própria concepção. Naná conta a viagem dela, eu conto a minha. Já que fui instruído para colocar no papel, coloco.

Eles dizem assim: por aquilo chamado Curva da Distribuição Normal 50 % não acreditará. Dos restantes, 50 % não tomará atitude, sobram 25 %. Dos que forem capazes de algo 50 % não possuem recursos, ficamos com 12,5 % e assim vai reduzindo até os poucos aventureiros como Cabeza de Vaca, Marconi, Fawcett e outros serem absorvidos e ficarem vivendo lá centenas de anos até.

Dissemina-se a improbabilidade, dizem eles.

Sem falar que eles interferem nas mentes, criando confusão. Circulam invisíveis pelo mundo inteiro, instantaneamente, pairam como aviões nos milagres, luminosos dentro da luz densa emanada.

Mas não vou entrar por ai.

Minha tarefa é lembrar que lá estão guardados TODOS os objetos minimamente interessantes da humanidade, contando como tal a nossa espécie CRO-magnons e os neandertais, a partir dos hominídeos 10 milhões de anos de lembranças, desde quando chegou a Nave Mundo e se escondeu em Saturno.

Evidentemente eles são a origem de todas essas lendas milenares, aparecendo com as mais estranhas formas.

Bem, voltando, eles se deram ao trabalho de correr o mundo e coletar originais de TODAS as coisas significativas, deixando cópias nos lugares. Você precisa ver, para entender o que é realmente museu. Essas encenações nossas, por maiores que sejam, não passam de brinquedinhos comparado com aquilo que vi por lá. Não quero te provar nada, entretanto, lá estão gravadas TODAS as conversas de alguém minimamente importante. E se não estiver gravado, se o objeto não estiver lá é porque não houve importância no fato.

Nos três anos e meio em que estive lá (sem encontrar Naná, ela foi em outra época) não vi nem um bilionésimo das coisas. Eles gravaram tudo com sua tecnociência impossível e me deram uma cópia, um cilindro com um tiquinho de líquido dentro. É a memória, mas não há entrada e não há saída humanas. Quando queremos ver minha família e eu colocamos o cilindro sobre a mesinha, desejamos e vemos em quatro dimensões. Se aparece alguém, fica sendo só um cilindro engraçadinho. Quando as crianças desejam mostrar pros amiguinhos não conseguem. Quando morrermos o cilindro se tornará inerte e se dissolverá.

Esta é uma obra de ficção.

Como poderia ser diferente?

Nós compreendemos não poder ser mostrado a todos, não é ainda hora. Não ficamos tristes nem revoltados, é assim mesmo. Entendemos e nos divertimos com o dispositivo. De vez em quando, consultando-o, corrijo em artigos de jornal ou de revista um ou outro ponto. Entrei para a universidade, me formei, agora dou aulas, sou doutor para garantir credibilidade.

Meus alunos ficam espantados por ter me tornado capaz de “tirar do nada” coisas que nenhum ser humano viu. Penso que se ninguém me proibiu vou dizendo enquanto ninguém me proibir. Vou devagar, não tento perturbar nada, minha intenção não é causar polêmica, nem escandalizar, Jesus já avisou.

Vou indo.

Lembrando do Dia do Tampinha. A gente ri à bessa quando conto a minha e quando Naná conta a dela.

Fico esperando as três batidinhas.

Nunca mais ouvi.

Mas continuo esperando.

Vitória, quinta-feira, 29 de abril de 2010.

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