segunda-feira, 29 de agosto de 2016


Levando Desaforos para Casa


 

- Mãe, vamos levar esse desaforo pra casa? Ele tá grande, tá bonito.

- Não, querido, os desaforos não são comprados, são dados. Esse é do moço ali, o comprador das verduras deu pra ele agorinha mesmo.

- E quando vou ter um?

- Quando você crescer.

- E aqueles todos lá de casa, que tão no cercado?

- A maior parte é do seu pai, uma parte é minha, uns são da sua tia, que não estava conseguindo conviver com eles e deixou lá. Ela diz que vai devolver todos, sei não.

O vendedor se intromete.

- Se ele quiser dou o meu, já tenho bastante. Todo dia de feira a gente leva um punhado pra casa, tá lotado lá.

- Não, obrigado.

- Mãe, e o que é que a gente faz com os desaforos?

- Bem, cada um cuida do seu do jeito que quiser. Tem uns que devolvem na hora, não levam pra casa. São tão pouquinhos, esses, que nem aparecem. É gente que não quer deixar o desaforo aborrecê-la, mas é preciso ter coragem pra devolver o desaforo assim. A maior parte não tem coragem, eu não tenho, seu pai não tem, a tia Léia não tem (é tão fraca que leva os dela lá pra casa), o tio Jorge que diz que tem na verdade não tem, a casa dele vive cheia. A vovó e o vovô já passaram da época, mas ainda criam os deles, que ficam no fundo da memória atormentando, você não os vê resmungando?

- Vejo. E desaforo serve pra quê?

- Serve pra amargurar você.

- Se amargura, pra quê levar pra casa?

- Não tem jeito, querido, tem de levar.

Passa um garoto, quase atropela a mãe e o garoto, ela xinga.

- E isso, o que é?

- É um impropério, eles voam e somem no ar.

- Impropério pode?

- Não, meu bem, você ainda é pequeno pra isso.

- E os desaforos, o que eles fazem?

- Ficam incomodando você, até você se corroer por dentro, gritam lá dentro da sua consciência.

- E quem dá desaforos pros outros? Você também dá?

- Sim, algumas vezes, outro dia foi com a costureira, que tava fazendo tudo errado. Em geral é quem está numa posição superior; e quem leva para casa é quem tá inferiorizado, digamos, chefe e empregado.

- Você leva desaforo do seu chefe?

- Claro, docinho, todo mundo leva desaforo de chefe. Bem, quase todo mundo, outro dia um virou e não aceitou, falou uma palavra cabeluda.

- Palavra cabeluda?

- É, um palavrão, você ainda é muito novinho pra saber dessas coisas.

- E o chefe?

- Ficou caladinho. Isso é muito raro, mais de 95 % das pessoas levam os desaforos pra casa.

O garoto ficou meditativo.

- Isso que eu não entendo: se desaforo perturba, pra que aceitar?

Bem, meu filho, a gente tem de criar você, não é? E o seu irmão e a sua irmã, tem de dar atenção à vovó e ao vovô, cuidar de mamãe e papai que estão lá em casa, tem de visitar o pai e a mãe do seu pai no sanatório, tem de ir à praia no verão. Você não gosta da praia?

- Gosto.

- Então... E há as prestações do carro, as prestações da casa, remédio, uma quantidade grande de coisa, as roupas de mamãe e papai, seu material de escola, a escola privada de vocês três. Enfim... Entendeu, é porisso que a gente aceita os desaforos sem reclamar.

- Ah.

Serra, domingo, 22 de janeiro de 2012.

Nenhum comentário:

Postar um comentário