Levando Desaforos para Casa
- Mãe, vamos levar esse desaforo pra casa?
Ele tá grande, tá bonito.
- Não, querido, os desaforos não são
comprados, são dados. Esse é do moço ali, o comprador das verduras deu pra ele
agorinha mesmo.
- E quando vou ter um?
- Quando você crescer.
- E aqueles todos lá de casa, que tão no
cercado?
- A maior parte é do seu pai, uma parte é
minha, uns são da sua tia, que não estava conseguindo conviver com eles e
deixou lá. Ela diz que vai devolver todos, sei não.
O vendedor se intromete.
- Se ele quiser dou o meu, já tenho bastante.
Todo dia de feira a gente leva um punhado pra casa, tá lotado lá.
- Não, obrigado.
- Mãe, e o que é que a gente faz com os
desaforos?
- Bem, cada um cuida do seu do jeito que
quiser. Tem uns que devolvem na hora, não levam pra casa. São tão pouquinhos,
esses, que nem aparecem. É gente que não quer deixar o desaforo aborrecê-la,
mas é preciso ter coragem pra devolver o desaforo assim. A maior parte não tem
coragem, eu não tenho, seu pai não tem, a tia Léia não tem (é tão fraca que
leva os dela lá pra casa), o tio Jorge que diz que tem na verdade não tem, a
casa dele vive cheia. A vovó e o vovô já passaram da época, mas ainda criam os
deles, que ficam no fundo da memória atormentando, você não os vê resmungando?
- Vejo. E desaforo serve pra quê?
- Serve pra amargurar você.
- Se amargura, pra quê levar pra casa?
- Não tem jeito, querido, tem de levar.
Passa um garoto, quase atropela a mãe e o
garoto, ela xinga.
- E isso, o que é?
- É um impropério, eles voam e somem no ar.
- Impropério pode?
- Não, meu bem, você ainda é pequeno pra
isso.
- E os desaforos, o que eles fazem?
- Ficam incomodando você, até você se corroer
por dentro, gritam lá dentro da sua consciência.
- E quem dá desaforos pros outros? Você também
dá?
- Sim, algumas vezes, outro dia foi com a
costureira, que tava fazendo tudo errado. Em geral é quem está numa posição
superior; e quem leva para casa é quem tá inferiorizado, digamos, chefe e
empregado.
- Você leva desaforo do seu chefe?
- Claro, docinho, todo mundo leva desaforo de
chefe. Bem, quase todo mundo, outro dia um virou e não aceitou, falou uma
palavra cabeluda.
- Palavra cabeluda?
- É, um palavrão, você ainda é muito novinho
pra saber dessas coisas.
- E o chefe?
- Ficou caladinho. Isso é muito raro, mais de
95 % das pessoas levam os desaforos pra casa.
O garoto ficou meditativo.
- Isso que eu não entendo: se desaforo
perturba, pra que aceitar?
Bem, meu filho, a gente tem de criar você,
não é? E o seu irmão e a sua irmã, tem de dar atenção à vovó e ao vovô, cuidar
de mamãe e papai que estão lá em casa, tem de visitar o pai e a mãe do seu pai
no sanatório, tem de ir à praia no verão. Você não gosta da praia?
- Gosto.
- Então... E há as prestações do carro, as
prestações da casa, remédio, uma quantidade grande de coisa, as roupas de mamãe
e papai, seu material de escola, a escola privada de vocês três. Enfim...
Entendeu, é porisso que a gente aceita os desaforos sem reclamar.
- Ah.
Serra, domingo, 22 de janeiro de 2012.
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