quarta-feira, 31 de agosto de 2016


Roubando um Pouco do Seu Tempo

 

Começou com uma sensação muito sutil.

Eu sentia nitidamente que estava tendo pouco tempo para fazer as coisas. Por mais que me esforçasse sempre parecia que faltava tempo na minha vida. Prestei atenção, veio a dúvida. Que está acontecendo?

Eu era estudioso de Kahn e seus paradigmas, a certeza de que há tranquilidade e explosão, momentos de acúmulo de dados e momentos de compreensão. De Popper e sua testabilidade e refutabilidade. Li muito sobre o método de Descartes, francês (1596 a 1650), e das proposições de Francis Bacon (1561 a 1626), inglês, antes do anterior. Estudei autodidaticamente lógica e dialética.

Depois das pulgas atrás da orelha ESTUDEI MAIS. Estudei com atenção, fui a cursos de lógica e dialética, EU ME PREPAREI, tá bom? Fiz experiências, preparei o controle, comprei cronômetros.

Por vezes eu sentia que porções enormes do meu tempo simplesmente desapareciam. Eu estava indo de ônibus e de repente já estava um pedação adiante no meu caminho. Dormir eu não tinha dormido, porque senão minha cabeça descairia para os lados ou para frente, ou eu acordaria sobressaltado ou babando. Nada disso, era mais como se uma parte do tempo houvesse sido cortada. Li na literatura descrições de toda parte do mundo sobre o mesmo fenômeno: as pessoas insistiam em declarar faltar tempo em suas vidas. Em toda a geo-história era assim, desde a Antiguidade e passando por cada época, principalmente na pós-contemporaneidade, quando as pessoas são mais disciplinadas e atentas, educadas, tendo cursado a universidade até o pós-doutorado, tantas através do mundo. Sempre faltando tempo.

Por toda parte era a mesma coisa.

Tantas e tantas pessoas declarando faltar tempo em suas vidas.

Fiquei muito desconfiado.

Comprei os cronômetros e imaginei várias experiências supostamente relevantes. Arquitetei que se o tempo estava sendo roubado de mim, com toda certeza estava sendo roubado também das minhas coisas, das roupas, dos alimentos, de tudo. Comecei a reparar que as frutas envelheciam muito depressa em minha casa, andei perguntando às pessoas.

Pensei assim: coloco um cronômetro colado em mim, pendurado no pescoço por uma cordinha. Deixo outro do lado, dentro de uma pasta ou em cima da escrivaninha ou onde fosse. Apertados ao mesmo tempo, eles deveriam marcar os mesmos centésimos de segundo, porque eram feitos do mesmo material pela mesma empresa. Testei-os. Retestei-os. Para não errar na apreciação de ângulos, comprei-os digitais. Fotografei-os, para não me enganar e para ter prova. Até que distância de mim o tempo estava sendo roubado? Espalhei frutas iguaizinhas, colhidas no mesmo dia, do mesmo pé, defini um raio-de-furto. Coloquei os cronômetros fora dessa distância, que era mínima. Se viajava no ônibus colocava o controle na cadeira defronte. Se perguntavam dava uma explicação qualquer sem mentir, as pessoas acreditam em tudo.

Comecei a fazer uma listagem, plotando tudo no Excel, fui muito cuidadoso mesmo, todos os microssegundos bem anotados, detalhadamente. Passei meses fazendo isso. Não eram só segundos, não senhor, meias-horas, horas inteiras, se quer saber. E as pessoas do lado de fora, o que estavam pensando, será que eu desaparecia? Não, aparentemente não. O que faziam com todo esse tempo que roubavam de nós? Será que o davam à burguesia? A nobreza se apoderava dele em sua época? Os patrícios antes deles? Quem é que nos tirava o nosso tempo de vida?

Publiquei um artigo no jornal através de um amigo, as pessoas riram à bessa. Elas não se incomodavam que lhes roubassem seu tempo, as pessoas não estão nem aí. O que elas me dizem é que se pudessem fariam o mesmo com os outros, para lhes sobrar tempo para fazer o que quisessem. Que as coisas são assim desde os primórdios, que todo mundo sabe disso, menos eu.

Fiquei aturdido.

Caramba, tanto esforço por nada?

Chovi no molhado, fiz buraco n’água, dei nó na fumaça.

Tava pensando fazer um favor pras pessoas mostrando como o tempo nos é roubado, inclusive das crianças, principalmente as de rua, mas também aquelas que trabalham, e a todas essas as pessoas estavam rindo de mim. Só eu que estou indignado de roubaram nosso tempo?

É de dar nó nas tripas.

Além disso, fui chamado pela Polícia Federal pra prestar esclarecimento sobre um movimento sedicioso em favor do que denominaram Tempo Justo, uma nova seita que eu estaria criando, disseram, movimento revolucionário. Sugeriram que eu ficasse calado ou fosse morar em outro país.

O que eu iria fazer?

Melhor ser roubado diariamente no nosso tempo que ser expulso de seu próprio país. Mais Valia eu ficar quieto, como todo mundo. Só agora entendo o verdadeiro terror em que vivem quase todos.

Serra, quinta-feira, 03 de junho de 2010.

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