Roubando um Pouco do Seu Tempo
Começou com uma sensação muito sutil.
Eu sentia nitidamente que estava tendo pouco
tempo para fazer as coisas. Por mais que me esforçasse sempre parecia que
faltava tempo na minha vida. Prestei atenção, veio a dúvida. Que está
acontecendo?
Eu era estudioso de Kahn e seus paradigmas, a
certeza de que há tranquilidade e explosão, momentos de acúmulo de dados e
momentos de compreensão. De Popper e sua testabilidade e refutabilidade. Li
muito sobre o método de Descartes, francês (1596 a 1650), e das proposições de
Francis Bacon (1561 a 1626), inglês, antes do anterior. Estudei
autodidaticamente lógica e dialética.
Depois das pulgas atrás da orelha ESTUDEI
MAIS. Estudei com atenção, fui a cursos de lógica e dialética, EU ME PREPAREI,
tá bom? Fiz experiências, preparei o controle, comprei cronômetros.
Por vezes eu sentia que porções enormes do
meu tempo simplesmente desapareciam. Eu estava indo de ônibus e de repente já
estava um pedação adiante no meu caminho. Dormir eu não tinha dormido, porque
senão minha cabeça descairia para os lados ou para frente, ou eu acordaria
sobressaltado ou babando. Nada disso, era mais como se uma parte do tempo
houvesse sido cortada. Li na literatura descrições de toda parte do mundo sobre
o mesmo fenômeno: as pessoas insistiam em declarar faltar tempo em suas vidas.
Em toda a geo-história era assim, desde a Antiguidade e passando por cada
época, principalmente na pós-contemporaneidade, quando as pessoas são mais
disciplinadas e atentas, educadas, tendo cursado a universidade até o
pós-doutorado, tantas através do mundo. Sempre faltando tempo.
Por toda parte era a mesma coisa.
Tantas e tantas pessoas declarando faltar
tempo em suas vidas.
Fiquei muito desconfiado.
Comprei os cronômetros e imaginei várias
experiências supostamente relevantes. Arquitetei que se o tempo estava sendo
roubado de mim, com toda certeza estava sendo roubado também das minhas coisas,
das roupas, dos alimentos, de tudo. Comecei a reparar que as frutas envelheciam
muito depressa em minha casa, andei perguntando às pessoas.
Pensei assim: coloco um cronômetro colado em
mim, pendurado no pescoço por uma cordinha. Deixo outro do lado, dentro de uma
pasta ou em cima da escrivaninha ou onde fosse. Apertados ao mesmo tempo, eles
deveriam marcar os mesmos centésimos de segundo, porque eram feitos do mesmo
material pela mesma empresa. Testei-os. Retestei-os. Para não errar na
apreciação de ângulos, comprei-os digitais. Fotografei-os, para não me enganar
e para ter prova. Até que distância de mim o tempo estava sendo roubado?
Espalhei frutas iguaizinhas, colhidas no mesmo dia, do mesmo pé, defini um
raio-de-furto. Coloquei os cronômetros fora dessa distância, que era mínima. Se
viajava no ônibus colocava o controle na cadeira defronte. Se perguntavam dava
uma explicação qualquer sem mentir, as pessoas acreditam em tudo.
Comecei a fazer uma listagem, plotando tudo
no Excel,
fui muito cuidadoso mesmo, todos os microssegundos bem anotados,
detalhadamente. Passei meses fazendo isso. Não eram só segundos, não senhor,
meias-horas, horas inteiras, se quer saber. E as pessoas do lado de fora, o que
estavam pensando, será que eu desaparecia? Não, aparentemente não. O que faziam
com todo esse tempo que roubavam de nós? Será que o davam à burguesia? A nobreza
se apoderava dele em sua época? Os patrícios antes deles? Quem é que nos tirava
o nosso tempo de vida?
Publiquei um artigo no jornal através de um
amigo, as pessoas riram à bessa. Elas não se incomodavam que lhes roubassem seu
tempo, as pessoas não estão nem aí. O que elas me dizem é que se pudessem
fariam o mesmo com os outros, para lhes sobrar tempo para fazer o que
quisessem. Que as coisas são assim desde os primórdios, que todo mundo sabe
disso, menos eu.
Fiquei aturdido.
Caramba, tanto esforço por nada?
Chovi no molhado, fiz buraco n’água, dei nó
na fumaça.
Tava pensando fazer um favor pras pessoas
mostrando como o tempo nos é roubado, inclusive das crianças, principalmente as
de rua, mas também aquelas que trabalham, e a todas essas as pessoas estavam
rindo de mim. Só eu que estou indignado de roubaram nosso tempo?
É de dar nó nas tripas.
Além disso, fui chamado pela Polícia Federal
pra prestar esclarecimento sobre um movimento sedicioso em favor do que
denominaram Tempo Justo, uma nova seita que eu estaria criando, disseram,
movimento revolucionário. Sugeriram que eu ficasse calado ou fosse morar em
outro país.
O que eu iria fazer?
Melhor ser roubado diariamente no nosso tempo
que ser expulso de seu próprio país. Mais Valia eu ficar quieto, como todo
mundo. Só agora entendo o verdadeiro terror em que vivem quase todos.
Serra, quinta-feira, 03 de junho de 2010.
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