terça-feira, 30 de agosto de 2016


Proibida a Entrada de Gente Estanha

 

                        Resendinho foi mandado pela sua companhia multinacional para “o mundo”, os EUA, aonde iria se tornar civilizado e passar de presa a predador. Ninguém falava esse tipo de coisa, mas todo mundo entendia que era uma oportunidade única, a de ser agregado à verdadeira civilização, sair do subúrbio, migrar do quintal, dar uma banana. Resendinho, com sua falsa consciência revolucionária petista, era um adesista da cultura ou nação americana, um durex mesmo.

                        O nome dele vinha de existir um sênior, um Resende pai. O nome dos dois era Filogomenes Resende, só que ele era o Júnior, o que veio depois e teve de herdar o nome horroroso. Para não ser chamado de Filó, porque ninguém iria falar esse nome comprido, Resendinho se apresentava como Resende Jr., que ficou sendo Resendinho, o pequeno Resende, por vezes chamado Resed, “e aí, Resed? ”. Como ele trabalhava numa multinacional americana onde se falava freqüentemente o inglês nas esferas mais altas, passaram a dizer à boca pequena RESET (restaurar ou reinicializar no inglês da informática). Não teve jeito, pulou da frigideira, caiu no fogo. Então ele exigiu ser chamado de Resendinho, e era essa a origem.

                        Lá foi Resendinho a um daqueles bairros chiques das periferias das cidades americanas, com casas sem cerca com que todos sonhamos, para ficar três anos em treinamento e voltar transformado em gente.

                        Instalada a família a vida era só felicidade nos primeiros seis meses. O que era a civilização, não é mesmo? Terrorismo? Isso era mais é propaganda de televisão, porque na prática mesmo eles se sentiam no paraíso. As crianças iam para a escola, voltavam e iam brincar. O ônibus pegava e deixava na porta, elas iam brincar nos acres e acres da comunidade. Lá dizem acre, que são quatro mil metros quadrados, e não o nosso hectare, dez mil metros quadrados. Eram acres e acres de florestas e as crianças eram instruídas a não ultrapassar os limites.

                        Resendinho vivia ocupado, Marcela vivia nos shoppings centers, que eram de arrasar, davam de dez nos daqui. Celinha vivia ligando para as amigas e a mãe e irmãs para dizer que vivia nos shoppings centers, que eram de arrasar, davam de dez nos daqui. Resendinho, coitado, trabalhava até demais, querendo não apenas cumprir as metas dos colegas americanos, mas ultrapassá-las, com o objetivo evidente de obter as graças e os favores dos patrões. Ganhava em dólares, seu salário saltou de 100 mil reais para 80 mil DÓLARES, como Resendinho fazia questão de dizer modestamente, é claro, aos amigos, sempre que podia.

                        Um dia Resendinho quebrou a perna e por lá eles são muito rigorosos tanto com o trabalho quanto com as folgas obrigatórias, instruídas pelos médicos. Resendinho foi obrigado a contragosto a ficar em casa e isso significava ter muito tempo livre, o que o deixava angustiado. Tome TV paga, filmes de locadora, pizzas, Resendinho engordava. Celinha não parava em casa, era só comprando, comprando, comprando para dar coisas às amigas e parentas quanto voltasse. Celinha vivia nos shoppings centers, que eram de arrasar, davam de dez nos daqui. Resendinho engordava.

                        Aborrecido de só engordar, Resendinho começou a dar voltas nas redondezas, a ver como tudo era tão perfeito. Os gramados, viçosos a não mais poder, brilhantes, pareciam de plástico.As flores, poucas, sempre luminosas em suas cores estudadas. As árvores pareciam fabricadas, de tão perfeitas e vigorosas. Discretamente Resendinho tirou uma lasca com um canivete. Bateu fotos, procurou vizinhos para conversar e não encontrou, porque os maridos estavam fora trabalhando, os filhos estudando de manhã e de tarde em grupos ou em qualquer atividade, e as mulheres fazendo compras nos shoppings centers, que eram de arrasar, davam de dez nos daqui.

                        Resendinho estava sozinho no mundo perfeito. Empregadas não havia, americanos não têm disso, custa muito caro, não dá para pagar. Se tivesse alguma, Resendinho pensou com sua consciência brasileira, até talvez desse para faturar, desde que não fosse ser denunciado por assédio. Mas não havia uma sequer. Só os ricos tinham empregadas. Só os atores e atrizes de cinema. Droga, Resendinho ficou mordido de raiva. Droga. Ele estava infeliz de não ter ninguém com que conversar.

                        Então, decidiu ir mais longe.

                        Resendinho era aventureiro brasileiro, gostava de se aventurar; e foi, foi longe, de fato foi. Andou bastante e chegou até as beiradas, os limites do terreno coletivo. Fora das estradas que entravam e saíam, todas asfaltadas, todas com ciclovias à esquerda e à direita, todas perfeitíssimas em sua infalibilidade, Resendinho encontrou uma placa: PROIBIDA A ENTRADA DE GENTE ESTRANHA. Em inglês, é claro, que a essa altura Resendinho falava e escrevia com mais fluência e correção que os nativos. Ah!, são cuidados para evitar os penetras, ele pensou. E voltou para casa.

                        E assim, dia após dia, Resendinho foi se aventurando e encontrando placas semelhantes em todo o circuito, sempre os mesmos dizeres, sempre voltadas para fora. Resendinho foi ficando revoltado, de justamente os americanos, que fazem propaganda de sua democracia, estarem rodeados de tantas proibições. Resendinho se sentiu enjaulado, guiado pelo caos brasileiro a que estava acostumado. Isso se tanta opressiva vigilância pesando sobre os cidadãos o incomodava. Resendinho arrancou uma placa, depois duas, depois cinco, depois todas. Ninguém sabia de nada, porque todos estavam fora, as casas ficavam desertas de dia, de noite todo mundo assistia TV ou dormia. De pirraça queimou tudo.

                        Voltou a trabalhar.

                        Um dia a polícia esteve no bairro.

                        Uma pessoa estranha tinha sido vista, depois várias, a polícia voltava sempre. Eram pessoas MUITO estranhas, esquisitíssimas. Não eram deste mundo. As coisas mais extraordinárias aconteceram quando os alienígenas começaram a invadir o antigo bairro paradisíaco, agora infernal. Descobriram as placas queimadas, descobriam as digitais, descobriram o DNA, descobriram Resendinho. O caso é que as placas não eram apenas avisos, faziam parte de uma sistema de proteção, muito caro e muito efetivo, parte da luta dos Estados Unidos contra os aliens, que são os estrangeiros, os não-admitidos, os estranhos. As placas formavam um circuito por debaixo da terra.

                        Para poupá-lo dos detalhes direi apenas que a empresa deportou Resendinho e o demitiu; a mulher pulou fora do barco que balançava e levou os filhos, o carro, a casa, a mobília e metade da poupança. Posto para fora, Resendinho, engenheiro que era, não tendo carta de recomendação - porque passou como indisciplinado, rebelde despedido por multinacional – foi viver de bicos e vive fazendo bico até hoje. As pessoas zombam dele, cantando a música “é proibido proibir”, ou fazem o gesto de estar arrancando placa. Celinha não deu nem um dos presentes que trouxe, pelo contrário, vendeu, porque não tinha mais o salário de 80 mil DÓLARES de Resendinho para sustentá-la.

                        Só mais tarde Resendinho compreendeu que a perfeição é um preço a pagar, em termos de comportamentos e aceitações. Resendinho, tendo perdido a chance de se tornar outro, agora está mais revoltado e revolucionário do que nunca. Esqueceu de dizer que pretendia largar tudo para trás e viver de saudades.

                        Resendinho está devendo no meu armazém há mais de dois anos e se eu pego o safado vou esfolá-lo direitinho, que a conta é alta. Se você o vir por aí, me conta que eu te pago duas grades, bico seco.

                        Vitória, quarta-feira, 29 de setembro de 2004.

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