quarta-feira, 31 de agosto de 2016


Separação

 

                        Alfredo e Alfredo se conheceram em certo dia de outubro, dia de primavera, a prima-Vera tinha apenas chegado, eles riram.

                        Passaram a compartilhar tudo, não ficavam um instante separados. Eram carne-e-unha, inseparáveis mesmo. Aonde um ia o outro ia também. Eram o oposto um do outro, mas justamente isso era motivo de alegria, porque a distância podia ser preenchida pelo que um sabia e o outro não. Viveram assim em idílio por uns três anos e meio. A coincidência suprema de serem da mesma cidade e até do mesmo bairro, além de terem a mesma idade, 36, quando souberam um do outro, os fazia felizes. Viviam se elogiando, como fazem os artistas cariocas e brasileiros em geral.

                        Porém, certo dia Alfredo achou que Alfredo tinha sido deselegante com uma amiga, uma palavra mal posta, um palavrão na hora errada tinha começado a inimizade dos dois. Ademais de desbocado Alfredo não tinha nenhum escrúpulo em transar com qualquer mulher bem na frente dele. Alfredo, não, Alfredo era cuidadoso; esperava Alfredo dormir para sair e se encontrar com as namoradas. Sempre fora assim. Quando Alfredo descobriu ficou puto.

                        <Porra, cara, você é traíra mesmo, né? >

                        <É que você é muito desagradável, Alfredo. Por quê você tem que atacar as pessoas? >

                        <Não tenho que te dar satisfação, não, vá tomar no cu, porra. >

                        <É porisso mesmo que eu não gosto mais de sair com você>.

                        Então, de choque em choque eles foram ficando cada vez mais estranhos um ao outro. Moravam na mesma casa, mas não se toleravam. Brigavam com uma constância de deixar os vizinhos encabulados, o Alfredo apaziguador e o Alfredo fazendo de tudo para brigar, xingando, batendo nas paredes, até que um dia os vizinhos incomodados com a barulheira chamaram a polícia. Não teve jeito de separar os dois, mas eles prometeram baixar a bola. O Alfredo sofria, coitado, com a truculência do outro.

                        <Vai se fuder, seu viado, cê parece boiola. É uma frozinha, mesmo>. Até falar errado o Alfredo falava, para grande constrangimento do Alfredo, que sempre cuidara de falar um português o mais correto possível, até em conversas de mesa de bar.

                        Aliás, ficara insuportável ir com o Alfredo aos bares.

                        Os amigos de um e do outro reclamavam.

                        <Porra, Alfredo, esse Alfredo é um chato de galocha, cara, manda ele embora>.

                        Ou, então:

<Alfredo, fica quieto, merda, cê tá atrapalhando, vá se juntar com a sua turma de frutinhas>.

                        Quando era o Alfredo que ia às reuniões da turma do Alfredo, era esta que não agüentava.

                        <Alfredo, o Alfredo não gosta de vinho, não gosta dos nossos tira-gostos, não gosta do nosso papo, por quê você traz esse cara? >

                        Virou um inferno total.

                        Um dia alguém sem mais nem menos falou em separação.

                        Todo mundo achou impossível, apesar de tudo, mas a idéia permaneceu e foi evoluindo, os amigos juntando lenha na fogueira.

                        <Ô, Alfredo, esse cara não te merece, larga dele>.

                        Até passaram a chamar um de Alf e o outro de Fredo. Alf era o “chato demais”. Fredo era o sujo, o porqueira, o ordinário. Foi só dar nomes separados para a idéia de separação ir sendo incrementada até o ponto em que os dois não se suportavam mais, tentavam viver em horários opostos, um de dia e outro de noite. Que não poderia continuar assim não poderia mesmo, porque o dia foi dividido em duas porções de doze horas. Descontando quatro de sono, mais o tempo de tomar banho, as necessidades fisiológicas, trânsito, sexo e outras, como é que ficava o trabalho? O cansaço estava se tornando cada vez maior.

                        Até que chegou o tempo em que Alfredo e Alfredo só concordavam em uma coisa: viver junto não dá mais.

                        Procuraram uma clínica neuropsicológica e promoveram mesmo a separação. O problema maior nem foi clonar um corpo, o que já era relativamente trivial; o problema foi separar as memórias comuns – quem iria ficar com o quê, de antes dos 36? O que era de um e o que era de outro? Se fosse dada a mesma memória a ambos eles teriam de conviver com os mesmos amigos de antes daquele ano, sem falar nos pais e parentes: como ir visitar mamãe e papai e encontrar o detestado Alfredo lá? Sem falar na quantidade de psicólogos, psiquiatras e psicanalistas que foi preciso reunir para fazer a separação.

                        Vitória, sábado, 02 de outubro de 2004.

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