quarta-feira, 31 de agosto de 2016


Trazil, País do Futuro.

 

INQUISIDOR – mestre Ambrósio, agora que já foram feitas as apresentações, podemos começar. O que é esse livro, Trazil, País do Futuro?

AMBRÓSIO – excelência, é literatura, na tradição de Luciano de Samosata, que nasceu em 125 na Síria, tendo morrido em 181 do ano de Nosso Senhor Jesus Cristo. É só invenção para divertir as pessoas.

INQUISIDOR – como sabe vossa mercê, no ano de 1591 de Nosso Senhor Jesus Cristo é que se instalaram nesta colônia do Brazil as visitações visando coibir os desvios de fé, não viessem eles da Europa solapar nossa existência simples. Estamos no ano de 1620 de NSJC e o senhor mandou imprimir em Portugal isto que chama de livro, 500 exemplares, sem o imprimatur do bispo, sequer sem o nihil obstat do censor, Monsenhor Agripino. Qual o seu objetivo com essas transgressões? O senhor não sabe de nossos esforços em manter a pureza dos nativos?

AMBRÓSIO – nenhum que seja vil, é para divertir as populações. Não pensei que fosse afetar a fé, sou profundamente devoto, o senhor pode perguntar a todos da Vila, rezo mais e com mais frequência que qualquer um daqui.

INQUISIDOR – o senhor fala em Trazil, obviamente inspirado em Brazil, nossa terra, que o Senhor Jesus nos proteja do mal. Trocou apenas uma letra.

AMBRÓSIO – sim, mestre, é para fazer referência às impossibilidades.

INQUISIDOR – nele o senhor fala, espantosamente, de eleições... Que eleições?

AMBRÓSIO (angustiado) – escolhas, como se fosse possível tal heresia frente ao sagrado direito dos reis, é justamente para mostrar os descaminhos a que chegaríamos se as pessoas pudesse escolher quem os dirigisse. Eleições são escolhas.

INQUISIDOR (cortante) – nós sabemos muito bem o que significa.

AMBRÓSIO (sem jeito) – não quis insinuar nada.

INQUISIDOR II – inclusive o senhor sugere que as mulheres, nesse mundo seu inventado, poderiam no futuro, talvez, escolher também, votar, o senhor diz.

AMBRÓSIO – justamente para mostrar a impossibilidade, como é que elas, devendo ser conduzidas pelos homens, poderiam votar sem o consentimento deles? E se eles consentissem, como poderiam votar diferentemente? Que sentido faria? É para mostrar as demais demências, como a libertação dos escravos – que sentido haveria em libertá-los? Quem os alimentaria?

INQUISIDOR III – há uma invenção sua, tão estapafúrdia que não sabemos a que vem. O senhor fala em carruagens andando sem cavalos, isso passa de heresia, cheira a magia, a intervenção nos planos do Senhor. Podem os homens interferir na criação sem consentimento do Senhor?

AMBRÓSIO (visivelmente assustado e constrangido, assombrado com os rumos da conversa, enfático) – de modo nenhum, excelência, de modo algum, nunca!

INQUISIDOR I – então, qual o sentido de falar uma coisa assim?

AMBRÓSIO – é para dizer do mal que faria tal coisa, a desordenar a criação de Deus.

INQUISIDOR I – o senhor chega a falar, na página 207, de cidades com milhares e milhares de habitantes, maiores que Roma, maiores até que a Roma dos césares. Qual o seu propósito?

AMBRÓSIO (cansado e abatido) – é o de mostrar até onde os descalabros das invenções independentes dos homens podem desvirtuar o mundo bom que temos.

E assim prosseguiu por mais 80 dias, ao fim dos quais Ambrósio abjurou de suas indecências e perversões e foi desterrado em África, lá tendo morrido com 47 anos e com ele suas divergências quanto aos rumos. Seis exemplares foram mandados a Roma e os demais foram queimados. Quatro foram enterrados por familiares. Um deles foi parar na Alemanha, onde foi descoberto por Stepan Zueig 300 anos depois; ele adotou a ideia dos avanços, mas qual a chance de o Brasil se tornar um país do futuro, com tantos desacertos?

Serra, sábado, 14 de janeiro de 2012.

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