Trazil, País do Futuro.
INQUISIDOR – mestre Ambrósio, agora
que já foram feitas as apresentações, podemos começar. O que é esse livro,
Trazil, País do Futuro?
AMBRÓSIO – excelência, é literatura,
na tradição de Luciano de Samosata, que nasceu em 125 na Síria, tendo morrido
em 181 do ano de Nosso Senhor Jesus Cristo. É só invenção para divertir as
pessoas.
INQUISIDOR – como sabe vossa mercê, no
ano de 1591 de Nosso Senhor Jesus Cristo é que se instalaram nesta colônia do
Brazil as visitações visando coibir os desvios de fé, não viessem eles da
Europa solapar nossa existência simples. Estamos no ano de 1620 de NSJC e o
senhor mandou imprimir em Portugal isto que chama de livro, 500 exemplares, sem
o imprimatur do bispo, sequer sem o nihil obstat do censor, Monsenhor Agripino.
Qual o seu objetivo com essas transgressões? O senhor não sabe de nossos
esforços em manter a pureza dos nativos?
AMBRÓSIO – nenhum que seja vil, é para
divertir as populações. Não pensei que fosse afetar a fé, sou profundamente
devoto, o senhor pode perguntar a todos da Vila, rezo mais e com mais
frequência que qualquer um daqui.
INQUISIDOR – o senhor fala em Trazil,
obviamente inspirado em Brazil, nossa terra, que o Senhor Jesus nos proteja do
mal. Trocou apenas uma letra.
AMBRÓSIO – sim, mestre, é para fazer
referência às impossibilidades.
INQUISIDOR – nele o senhor fala,
espantosamente, de eleições... Que eleições?
AMBRÓSIO (angustiado) – escolhas, como
se fosse possível tal heresia frente ao sagrado direito dos reis, é justamente
para mostrar os descaminhos a que chegaríamos se as pessoas pudesse escolher
quem os dirigisse. Eleições são escolhas.
INQUISIDOR (cortante) – nós sabemos
muito bem o que significa.
AMBRÓSIO (sem jeito) – não quis
insinuar nada.
INQUISIDOR II – inclusive o senhor
sugere que as mulheres, nesse mundo seu inventado, poderiam no futuro, talvez,
escolher também, votar, o senhor diz.
AMBRÓSIO – justamente para mostrar a
impossibilidade, como é que elas, devendo ser conduzidas pelos homens, poderiam
votar sem o consentimento deles? E se eles consentissem, como poderiam votar
diferentemente? Que sentido faria? É para mostrar as demais demências, como a
libertação dos escravos – que sentido haveria em libertá-los? Quem os
alimentaria?
INQUISIDOR III – há uma invenção sua,
tão estapafúrdia que não sabemos a que vem. O senhor fala em carruagens andando
sem cavalos, isso passa de heresia, cheira a magia, a intervenção nos planos do
Senhor. Podem os homens interferir na criação sem consentimento do Senhor?
AMBRÓSIO (visivelmente assustado e
constrangido, assombrado com os rumos da conversa, enfático) – de modo nenhum,
excelência, de modo algum, nunca!
INQUISIDOR I – então, qual o sentido
de falar uma coisa assim?
AMBRÓSIO – é para dizer do mal que
faria tal coisa, a desordenar a criação de Deus.
INQUISIDOR I – o senhor chega a falar,
na página 207, de cidades com milhares e milhares de habitantes, maiores que
Roma, maiores até que a Roma dos césares. Qual o seu propósito?
AMBRÓSIO (cansado e abatido) – é o de
mostrar até onde os descalabros das invenções independentes dos homens podem
desvirtuar o mundo bom que temos.
E assim prosseguiu por mais 80 dias,
ao fim dos quais Ambrósio abjurou de suas indecências e perversões e foi
desterrado em África, lá tendo morrido com 47 anos e com ele suas divergências
quanto aos rumos. Seis exemplares foram mandados a Roma e os demais foram
queimados. Quatro foram enterrados por familiares. Um deles foi parar na
Alemanha, onde foi descoberto por Stepan Zueig 300 anos depois; ele adotou a
ideia dos avanços, mas qual a chance de o Brasil se tornar um país do futuro,
com tantos desacertos?
Serra, sábado, 14 de janeiro de 2012.
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