terça-feira, 30 de agosto de 2016


Politicamente Correto

 

Miguel Bocassuja ia passando, Carlinhos Trancarrua levantou-se de chofre da cadeira e gritou, acenando com os dois braços levantados.

- Bocassuja, meu santo, dá um chego aqui.

Bocassuja, enorme de gordo, veio bamboleando.

- E aí, Trancarrua? Quem é esse?

- Rafael Calamares.

Bocassuja estranhou.

- Calamares?

- É, polvo, ele parece ter oito braços pra pegar o que é dos outros. Não podíamos chamar de Lula, né?

- Ah, é, bem pensado.

Para o outro.

- Venha me visitar no escritório, talvez possamos fazer algumas, juntos.

- Com certeza.

- Vou discursar, depois falo com você.

Depois que Bocassuja sai, eles voltam a conversar.

- Parece o Delfin, né?

- É, só que o Delfin era mais esperto.

- Sei não, sei não.

- Trancarrua, conta como funciona isso. Não sei por que me convidaram, nem sei se deveria estar aqui.

- Que é isso, Calamares?

Faz dois sinais de positivo.

- Você é meu herói, cara, logo de prima emplacou uma das grandes sobre o povo, você é o maioral. De fato, não é, há gente maior do que você, mas mesmo assim... O Salim foi do caralho, cara! Um gênio. Me arrepio todo só de falar o nome dele. O FHCB foi genial também, mas noutro patamar. Quanto você acha que ele levou pra vender as estatais a preço de banana podre? Só as reservas de minério da Vale valiam uns cinco trilhões de dólares e ele vendeu a Companhia toda por cinco bilhões, um milésimo. Os milicos, puta merda, 25 bilhões de verdinhas. Sarninha, demais, esse foi o maioral, ele asfaltou até poste no Maranhão. Investiu tanto no Algarves que fizeram até estátua pra ele. Comprou um estado, o Maranhão, e mudou o nome para Saraneylândia, está na Internet. Tem, tem muita gente melhor que você, porém você foi alto, entende? Pelo pouco espaço de manobra, 45 %, quem já ouviu falar disso? No ES o Robson Vintinho não passou de 20 %. Nós temos nossos heróis.

- Carlinhos, como funciona isso?

- Você fala de as pessoas falarem abertamente?

- Sim. E os xeretas da impizza?  Os dos caderninhos de anotações e das câmeras, que estão filmando.

- Ô, meu santo, você está falando de Brasil, aqui todo mundo esquece tudo. Porque também tem isso: uns sonegam do IR, outros sonegam do ICMS, outros traem a nação deste e daquele modo, há tráfico de influência, as taxas judiciárias, os queijos e as bolas do Fisco. Quem é santo? Quem pode abrir a boca pra reclamar? Tá todo mundo dando golpe em todo mundo. Tá todo mundo comprometido, cara, fica tranqüilo, fica na sua. E depois de uns meses, depois de no máximo uns anos tudo está esquecido, se você for pego, volta numa boa.

- E quando pegam alguém?

- Meu querido, presta atenção, você tem de guardar algum para molhar as mãos. Lubrificação da máquina é fundamental. O caderninho de endereços é importante. Saber com quem andas. Estou vendo que essa primeira sua foi um pouco de sorte, mas eu te ensino. Seguir os grandes é o que há, certo, ler as biografias ocultas, ouvir o zum-zum-zum. Prestar atenção ao tititi e nunca estar perto dos muito visados. Se você vir um agente da Polícia Federal, corra. Não beba em qualquer bar, você pode soltar o verbo, e o pior nem é você se entregar, é entregar os outros. Não conte nada nem pra mulher, lembra do Pitta? Filho saber é uma bosta, dá um carro pra cada um, tira da cadeia.

- E isso é correto?

Trancarrua olhou com cara de poucos amigos, como se estivesse sendo acusado ou o outro fosse imbecil.

- Como, correto? Claro que é! Correto no sentido da humanidade comum, você quer dizer? Pode até não ser, mas politicamente, é. Pouco interessa se é correto, pôrrrrra. POLITICAMENTE, entende. Politicamente é corretíssimo, todos ou quase todos fazem. Você conhece um que não faz?

- Não, eu não.

- Então, que merda de pergunta é essa? Procê ter uma idéia, de 78 municípios do ES só de um as contas não foram rejeitadas em certo ano. Tá ou não tá pra nós? De 30 deputados estaduais só três não participavam do mensalão nosso que antecipou o nacional, só pra você ter uma idéia. Meu amigo, um prefeito de Cariacica disse ter queimado um bandido num poste lá na terra dele, Sooretama, sei lá, e não aconteceu nada com ele. Disse isso quando era deputado estadual, DA TRIBUNA, diante do Plenário, vamos e venhamos. Quanto a pegarem uns e outros, é o momento do “agacha”, pra abaixar e deixar levarem os otários, é ou não é? São os ossos do ofício – se você não quer risco vá roubar de velhinhos como fez a Enron. Na ativa, NO BRASIL, é coisa pra macho. Você rouba, mas há riscos. Pra roubar sem receio tem que ser no nível federal mais alto ou no estadual, mas tem de ter rede de apoio. Até no circo tem, não iria ter no nosso meio? POLITICAMENTE, é correto se você faz certo.

- Não, cara você ficou nervoso à toa, estou ciente. O que eu quis dizer é no caso de haver vazamento. Falar assim abertamente...

- Rafael, cê tá doido, meu nego? Isso contamina o país inteiro, o mundo inteiro. E o “parafuso Pentágono”? Se lá, que é lá, onde eles prendem mesmo, as forças armadas estão armando, meu filho, que dirá aqui. Na Holanda, no Japão, nem falar nas republiquetas de banana, nas bananeiras. E os africanos, então? Acorda, Rafa, acorda, meu santo, é uma rede, entende? Homem, mulher, é uma putaria só. Você vai ver, daqui a pouco o Bocassuja vai fazer o discurso dele, vai entregar todo mundo, é uma festa, a gente vai rir pra caramba e vai ficar por isso mesmo. E a Mídia, você acha que não tá comprometida? Você acha? Você acha que eles falam tudo que sabem? Se eles abrissem a boca até a sua mãezinha iria pra cadeia, garoto. Você iria dizer: “a mamãe tava aprontando e nem deu o meu”. A podridão é geral, neném.

- Carlinhos, não precisa ficar assim, cara, sou só um principiante, ainda tenho de dar tombo em muitos brasileiros até ficar à altura de vocês. Que sou eu? Foi só o nervosismo de todo mundo falar assim à solta.

- Baby, presta atenção: em sociedade tudo se sabe. Já ouviu falar disso? E como saberíamos, se ninguém contasse? Todo mundo cochicha com todo mundo, é uma espécie de seguro social – se alguém trair, o resto todo sabe e pode entregá-lo, entende? Essa titica vem desde Pero Vaz de Caminha. Na Primeira Carta ele já pedia favores a El Rey para o genro. Já começou assim, meu filho. Fique frio. E vamos beber que sem beber ninguém solta as molas do riso.
Vitória, quarta-feira, 05 de maio de 2010.

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