Deus lhe dê em Dobro
Num
país como o Brasil, em que as elites dão o exemplo nefasto do não-trabalho ou
do ócio mais ostensivo, o povo miserável tornou-se mendigo, pedinte sem a menor
vergonha. Pedem tudo a todo instante em todo lugar. É moda no país, porque as
elites também esmolam o que não é delas ao governo, que toma sem o mínimo de
embaraço os tributos da população, escorchando-a o quanto pode.
Então,
os mendigos criaram fórmulas. Os pequenos são ensinados a dizer uma cantilena
nos ônibus (“sou pobre, mas é melhor pedir que roubar; peço por minha mãe, meus
irmãos pequenos”; etc. – valeria a pena gravar e fazer livros da variabilidade).
Há alguns que pedem em nome da AIDS, de ser uma chaga social, os remédios
caros, os preconceituosos que não dão emprego.
E,
é claro, quase todos dizem “Deus lhe dê em dobro”.
Há
aí uma ironia confrontadora, porque as pessoas dão 50 centavos, então Deus é
obrigado a devolver um real. Ou é fórmula, repetição, chavão, pois o nome de
Deus não vale mais nada na boca dessa gente, perante o mandamento “Não chamarás
o seu Santo Nome em vão”. Ou há a esperança forçadora de que a pessoa dê mais,
para correspondentemente Deus dar mais também. Para esperar receber dez reais a
pessoa deveria dar cinco.
Outros
dizem: “Deus lhe pague”, de modo que estão acumulando uma dívida enorme em nome
de Deus. Ou “Deus o recompense”, ou o que for.
Ninguém
fez ainda um estudo completo sobre a morbidez socioeconômica que é a
mendicância, de como a podridão que é esse pedir contínuo (que, como disse Luís
Gonzaga, pai) vicia o cidadão. Introduz-se com a mendicância permitida,
tolerada, até estimulada, a complacência com a miséria, com a folga dos
folgados, com o excesso de espaço dos espaçosos. Não trabalham os ricos nem os
miseráveis, trabalham os médios-altos e os médios-baixos, os pobres. Os
extremos vivem, de um modo ou de outro, da mendicância.
O
que é péssimo para qualquer nação que se preze.
Vitória,
quinta-feira, 07 de novembro de 2002.