Guardiões
do Museu do Inexistente
O diretor do Instituto de Geo-História
levantou-se.
Estava numa beca alinhadíssima. A mulher dele
tinha falecido recentemente e via-se uma pontada de dor em seu rosto, que
procurou descartar. Persistia um travo de amargura. A doutora Lídia, que era
caso dele, fica roçando a perna na dele, para seu grande constrangimento, pois
se imaginava vigiado. Ela colocou ostensivamente a mão sobre a dele para lhe
dar apoio e mostrar sua posição.
- Senhoras professoras, senhores professores,
quero agradecer penhoradamente o esforço de todos e cada um. O pessoal de
apoio, como sempre tem o nosso reconhecimento por sua devoção, pois sem ele não
poderíamos trabalhar. Sem a segurança proporcionada por nosso pessoal também
seria impensável operar, devido à possibilidade de entrada de intrusos. Enfim,
obrigado de coração.
Os alunos e as alunas bateram palmas, o
diretor agradeceu.
- Lembro-me de vocês cinco anos atrás, naquelas
ocasiões em que tivemos alguns desentendimentos, peço desculpas se me exaltei.
Da plateia ouve-se: “que é isso, diretor, nós
amamos o senhor”. “Não foi nada, diretor”.
- Obrigado.
Toma um copo d’água, pigarreia.
- Aqui vocês aprenderam muito sobre o papel
dos geo-historiadores junto aos governos e viram como tudo é tramurdidura,
trama-e-urdidura, tecido como o da própria vida e toda a responsabilidade que
temos de mostrarocultar a realidade, remodelá-la, transformá-la em doces
mentiras que servem aos governos. Viram que sem nós seria impossível governar,
pois as pessoas começariam a indagar muito. Nem falo dos intelectuais, dos
jornalistas, que esses vivem na superfície, falo mesmo do povo, o qual ficaria
inquieto além das medidas e não trabalharia a contento. Então, mentimos, melhor
dizendo, INVENTAMOS a realidade da época.
Gritos da plateia: APOIADO, APOIADO, APOIADO,
prorrompem aplausos incontidos, alguns choram, emocionados com a missão.
O diretor faz sinal com a mão pedindo
silencio à algazarra.
- Vocês se lembram de que alguns de vocês
achavam que iam ser guardiões como nos filmes, ficariam num lugar fechado com
vários objetos que não podem existir, não devem existir, não existem, são
inexistentes. Seria aquela vida glamorosa à James Bond combatendo o mal,
percorrendo o mundo, atirando e tentando escapar das balas?
Risos nervosos dos que acreditavam nisso,
risos gozadores dos que não acreditavam, uns zombavam, os outros ficavam
furiosos.
- Por favor. Por favor. Tinham essa visão
romântica, não é mesmo?
É SIM, É SIM.
- Então. Agora sabem qual é a verdade. Na
verdade, mesmo, nossa profissão é muito monótona, é preciso alto equilíbrio,
grande paciência, somos como espiões, temos de ficar atentos cada segundo e
NUNCA, NUNCA revelar nossas posições. Ouvir e relatar, plantar boatos,
desautorizar, coibir, acobertar, rir, debochar, divergir, passar leis, plantar
artigos na imprensa, agir na universidade, entrar em cada estamento dos
governos, tornarmo-nos empresários, ENFIM PROTEGER SOB QUALQUER FORMA os
segredos. Vocês serão governantes, políticos, juízes, empresários, militares,
intelectuais, artistas, escritores, qualquer coisa para a qual tenham pendão. E
vigiarão. Não são apenas vocês, no mundo formamos centenas de turmas todos os
anos, estamos espalhados em toda parte. Veja o Arquivo X, é o contrário,
não é? Em vez de tentar descobrir nós encobrimos.
É, É, É – rebentam em risos, batem nas
cadeiras, o diretor não liga, os professores estão verdadeiramente extasiados:
quem diria, outro dia um grupo de crianças, agora devotados participantes?
- Pois é. Este é um momento verdadeiramente
venerável, porque vocês, imbuídos do sentido de missão, sairão pelo mundo
negando e mentindo abertamente, falsificando e escondendo sem o menor pudor, pois
agora sabem que o objetivo é proteger o status quo. Tudo aquilo que vocês viram
nos depósitos ao redor do mundo NÃO EXISTE e vocês são de agora em diante os
guardiões do inexistente.
NÃO EXISTE, NÃO EXISTE, NÃO EXISTE. “Viva o
diretor”.
Todos se levantam e batem palmas por vários
minutos.
Serra, sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012.