quarta-feira, 31 de outubro de 2018


Tudo como Dantes

 

Dante é um cara muito legal, um amigo antigo, com aquele jeitão tranqüilo, não sei como é em casa. Assim me parece. Tem uma bonomia, uma maneira boa.

Um dia saí de manhã e reparei que todos na rua tinham a cara do Dante, inclusive as mulheres e crianças, os bebês, os velhos; fossem brancos, pretos, japoneses, um índio que eu conheci pelas roupas e os adereços, todo mundo era Dante, tudo estava como Dantes. Tomei um susto, credo! Parei na padaria, a moça do caixa tinha o rosto do Dante, inclusive as rugas em menina tão novinha. Não era nada deformado, não era como se tivessem colocado nela máscara disforme – tanto nos bebês quanto nos idosos a mesma face, perfeitamente ajustada, menor nos jovens, maior e mais larga nos idosos, sempre o Dante reconhecível.

Nosso amigo Dante.

Nessa padaria há um espelho, olhei e eu também tinha o rosto do Dantinho, sem tirar nem por, olhei com detalhe. Por dentro era eu, eu me reconhecia com minhas ideias, minhas referência culturais, minhas necessidades, minhas ligações. Podia ver meu corpo baixote, barrigudinho, meus braços com operação de pontes de safena (braquio-radiais; aprendi essa palavra nova), meus cabelos brancos, barba branca no rosto do Dante.

Um Dante é ótimo, até dois ou três, mas (provavelmente) bilhões? Todos do mundo? Como distinguir as pessoas, como saber quem era quem?

E como saber que ideias tinha o Dante-A defronte de você? E beijar uma Dante, como seria? Cruz credo. O mundo mergulhou na incredulidade e na paralisia. O fato é que as pessoas queriam a igualdade, porém não tão completa assim. Só aí foram ver que as diferenças importavam.

Fiquei pensando que chato seria se todos fossem eu.

E se todos tivessem meu rosto?

E se todos tivessem meu corpo?

E se todos tivessem minhas ideias, se fossem iguaiszinhos a mim?

Luto para impor minhas ideias a todos e cada um, como cada um e todos, mas isso seria ruim, um absurdo, o melhor é haver essa variedade inumerável no mundo.

No outro dia acordei com receio de sair, mas ao levantar – ao contrário do que faço sempre – olhei no espelho e fiquei aliviadíssimo ao ver que era eu, não era Dante.

Compreendi que tanto a igualdade quanto a diferença são necessárias. Ou então era apenas um sonho. Entendi que a igualdade que pleiteamos é a política, a do respeito e da consideração.

Serra, quarta-feira, 18 de abril de 2012.

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