domingo, 28 de outubro de 2018


Comumbeira V

 

Não houve jeito, o Tribunal não arredou pé na primeira instância; na segunda instância a Comumbeira (comunidade macumbeira, o condomínio dos macumbeiros) perdeu de novo e foi condenada a pagar os 70 mil e as custas, mais 20 %, total de 84 mil.

Possesso como estava, Gilberto conversou (ver, propriamente, não viu, porque havia uma fumaceira danada no ambiente da reunião, viam-se os exus brigando perto do teto, pedaços de reboco caíam) com os condôminos, conseguindo anuência irritada sobre prestar serviços avulsos nas redondezas, cada qual fazendo um bico (e às vezes uma segunda boca nos desafetos) para juntar o dinheiro, até que o Supremo Xamã fosse acionado e desse uma decisão definitiva.

A cidade foi dividida em zonas (literalmente, eram zonas) de influência com tantas quadras cada qual. De vez em quando aparecia uma perna torta ou um braço fino nas áreas divisórias, nas ruas limítrofes, se um condômino fazia trabalhos que desagradavam o “proprietário” vizinho, sem falar em tampas quebradas de bueiros, canos de abastecimento d’água que estouravam, redes de esgoto que explodiam na ruas comuns.

Quando complicou mais, uma vez espalhou uma ziquizira coletiva e as pessoas não paravam de coçar na quadra T, seguida de proliferação de escrófulas na vizinha quadra S; parece que houve um mal entendido. Depois disso ambas pararam miraculosamente.

Pegou fogo numa casa na quadra H, o corpo de bombeiros pensou em botija de gás explodida como causa, mas a dona da casa alegou usar fogão elétrico, um dos raros daquela cidade. Seguiu-se a retaliação e uma casa afundou no solo sem nem deixar vestígios. O síndico, Gilberto, reuniu os dois grupos e chegou a conciliação, mas a casa que voltou era diferente, bem como os moradores. Onde tinha ido parar a antiga casa e os seus ocupantes ninguém sabia dizer. Ficou por isso mesmo, caluda.

Quando a coisa foi ficando mais pesada as pessoas brancas acordavam negras, as negras acordavam pintadas como zebras, os índios da aldeia próxima principiaram a falar norueguês, os pescadores descobriram assustados que os peixes tinham adquirido asas; por infelicidade eram agora piranhas aladas muito vorazes, vários foram parar no hospital.

Depois disso degringolou de vez: toda uma quadra foi transformada em zumbi e começou a andar estranhamente, quase como se fossem atores, querendo como eles cachê. Em compensação na antagônica todos foram transformados em postes, vendo-se postes dirigindo, cozinhando, indo para a escola, cuidando da grama e assim por diante, com luz apagada ou luz acesa.

Até juizado interferir e cancelar a dívida.

O problema é que os condôminos foram obrigados a trabalhar três semanas para reparar as modificações e alguns estão bravos à beça.

Serra, sexta-feira, 20 de abril de 2012.

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