quinta-feira, 1 de setembro de 2016


Eutérmino

 

O doutor Carlos era por um lado ferrenho defensor da eugenia porque, dizia, o contínuo melhoramento da espécie levaria ao fim da necessidade dos remédios ou, pelo menos, sua redução drástica a uma fração dos que são ofertados hoje, a 1 % ou a 0,1 % ou até menos (imediatamente as indústrias farmacêuticas lhe tiraram as férias pagas no Caribe, as verbas de pesquisa, todas as facilidades em restaurantes, começaram a fofocar no meio médico-bioquímico, foi um horror, todos passaram a vê-lo como inimigo). Já não haveria necessidade de muletas e aparelhos ortopédicos (as indústrias do setor juntaram-se às farmacêuticas), nem de Cooper e corridas (as empresas de calçados e de tênis ficaram horrorizadas), nem de regimes (aí foram os colegas endocrinologistas e nutricionistas que entraram na parada, bem como as indústrias do light e do diet) PORQUE o corpo só aproveitaria dos alimentos aquilo que fosse estritamente necessário, descartando o resto todo.

O doutor Carlos estava longe de ser racista, muito pelo contrário, era a favor de pegar os melhores valores de cada raça, todas as vantagens, descartando ferozmente as desvantagens, no processo fundindo esses melhores numa super-raça central morena capaz de enfrentar o futuro plenamente.

Enfim, doutor Carlos passou a ser detestado no meio médico-farmacêutico-industrial, quer dizer, já não podia circular sem que cuspissem nele e coisa e tal, durante um tempo foi preciso até contratar guarda-costas e usar colete à prova de balas e facadas. Decerto houve aquela fez que a enfermeira escorregou e cortou o braço dele com o bisturi, pedindo depois mil desculpas, é compreensível. Ou daquela vez em que acidentalmente doutor Jonildo esbarrou nele e ele caiu na escada por acaso recém-lavada, descendo seis lances a toda velocidade: duas costelas quebradas, nariz entortado, isso é o de menos. E teve aquela outra em que ele tomou uma dose pequena de veneno do pessoal da homeopatia, remédio por acaso super-dosado. Ou então, quando teve gripe e lhe injetaram umas bolhas de ar, descuido do aplicador, quase provocando embolia, não fosse ele ser médico...

O acaso faz coisa.

Lei de Murphy.

Bem, rico como era, o doutor Carlos era também a favor da eutanásia, a ideia de proporcionar alívio aos que estão morrendo em processo terminal – ajuda humanitária, claro, afinal era a vida dos outros. E só se a família concordasse. Isso aliviaria o seguro-saúde, que tinha de pagar diárias caríssimas apenas para manter os pacientes e prolongar suas vidas, sem falar daqueles em coma, que diária de hospital não é mole. Se o doutor Carlos perdia por um lado, ganhava por outro, os SS ficaram super-a-favor, doutor Carlos era o máximo. Os hospitais não gostaram muito de o doutor Carlos estar tirando dinheiro deles e ele sofreu mais alguns acidentes, coisa pouca. Teve a vez que a rótula dele foi esmagada por um carro que o atropelou no pátio do hospital (por sorte ele puxou a perna, pegou de raspão no joelho), teve aquela vez em que o ladrão o espancou com uma barra de ferro sem felizmente levar nada, teve a ocasião em que o armário pesadíssimo caiu sobre ele no quarto do plantão e mais umas vezes, 10 ou 15, quem vai contar?

Tanto trabalhou a questão que acabou vitorioso, passaram uma lei autorizando os médicos, uma junta de pelo menos três, a injetar um coagulante que matava em apenas cinco segundos. Mas eles não diziam “matar”, que seria rude, falavam em “socorro administrado”.

Por último doutor Carlos, que só dirigia a 60 km/h (o pessoal até reclamava: ô, meia-roda, não sabe dirigir carro compra um carrinho de mão) foi jogado do precipício pelo caminhão que vinha a 130 em sentido contrário, que azar.

Entrou em coma, ficou um mês, não melhorava, conversaram com a família, receberam autorização de doação de órgãos, foram socorrê-lo no mesmo hospital onde ele trabalhava. Com muita dificuldade conseguiram 25 médicos dispostos a assinar o laudo de morte cerebral.

Foram os três médicos e três enfermeiras.

MÉDICO UM – todos concordam?

TODOS (eufóricos) – SIM.

MÉDICO UM – gente, pelo menos disfarça; e se houver câmera?

TODOS – tem não, tem não.

DOUTOR MARCOS – gente, ei gente.

MÉDICO UM – alguém quer falar alguma coisa?

Todos balançam a cabeça negativamente.

DOUTOR CARLOS (desesperado) – gente, me ouça, tô vivo.

DOUTOR DOIS – os documentos tão em ordem, confere aí, Magda.

MAGDA – super em ordem, já conferir 11 vezes.

DOUTOR CARLOS – gente, não faz isso comigo, não finge que não está me ouvindo, sou eu, doutor Carlos. Vou mexer os dedos para vocês verem que tô vivo (pensa que mexe, mas na realidade não mexe nada).

DOUTOR TRÊS – Jonildo, você vê algum sinal de vida?

DOUTOR JONILDO – nada, nadica mesmo. E você, Emerson?

DOUTOR ÉMERSON – necas de pitibiribas.

DOUTOR CARLOS (pensando estar falando) – socorro, socorro.

DOUTOR TRÊS – pode aplicar, Jussara.

Serra, sexta-feira, 03 de fevereiro de 2012.

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