quarta-feira, 31 de agosto de 2016


Causa e Efeito

 

Tradicionalmente Causa e Efeito vinham um depois do outro, eles não se importavam, a Causa tinha nascido antes, o Efeito era mais novo, assim era a ordem das coisas.

Alguns cientistas acharam que isso não estava certo: não poderia dar-se, na condição de “tráfego de táquions” (ninguém se perguntou se os táquions eram elementos de prova bem estabelecida, muito menos se, porventura, eles acaso não existissem como iria se dar o tráfego do inexistente?), não poderia dar-se de o efeito preceder a causa?

Efeito ficou em dúvida.

- Mas ela é vários anos mais velha que eu... Todo mundo sabe que eu nasci depois, pra que mudar agora?

Mas a dúvida tinha sido plantada.

E a dúvida cresceu como uma árvore vistosa que, certamente, dava galho. Se você olhasse bem, era cheia de galhos. Entrementes, você bem que poderia colocar-se à sombra da dúvida para ficar meditando. E, vai que vai, a árvore da dúvida deu frutos.

Efeito achou que não estava mesmo muito certo: por que a Causa sempre em primeiro? Ele não poderia algumas vezes (não digo todas) anteceder a própria Causa? E se Colombo tivesse descoberto a América ANTES DE IR, em 1491, antes de chegar lá em 1492?

Que é que tem, são só números.

E se eu tivesse nascido antes de mim mesmo?

E se eu tivesse nascido antes do meu pai? Poderia tê-lo impedido de conhecer mamãe e aí eu não teria nascido. Não, porque poderia ser filho da minha mãe e não do meu pai, então teria de recuar para antes do meu avô, porque aí, sim, definitivamente ele não teria tido mamãe. Efeito não sabia que isso já estava na literatura de FC há muitas décadas com o nome de Paradoxo do Avô.

E se eu tivesse nascido ANTES DE HITLER? Se a Causa que foi Hitler deu origem ao Efeito, se ele não existisse não existiria o Efeito e como eu poderia recuar para trás da Causa?

E assim foi o Efeito pensando: que coisa maravilhosa é a Ciência Mágica! Com base numa simples possibilidade verbal não testada no plano materenergético, já mudamos TANTA COISA. DE FATO, podemos reprogramar TUDO, é uma beleza.

Bom, há uns efeitos colaterais, que são parentes do efeito e só se apresentam em condição de guerra. De todo modo, em política, na espionagem e na guerra (que é tudo a mesma coisa, por outros meios, junto com a diplomacia, que é o gênero de espionagem consentida), os colaterais são esperados, os danos são uma projeção, são aceitáveis (desde que aconteçam com os outros).

E o que há mais a dizer, pensou Efeito: viva a liberdade desbragada e a irresponsabilidade mágica.

Serra, quinta-feira, 26 de janeiro de 2012.

Carteira de Trânsito


 

Com o avanço da vigilância, as câmeras se espalhando por toda parte, os governantes desocupados inventaram a “carteira de trânsito”; não era carteira de motorista, para quem queria dirigir carro, era carteira de trânsito mesmo, só se podia transitar com ela. Era mais que carteira de identidade, pois esta só é mostrada aos representantes da autoridade da lei quando eles as pedem.

Não, a CT tinha de ser apresentada a qualquer momento.

Como saber se você era brasileiro?

Como você provaria que estava dentro da lei?

As câmeras te vigiavam, você já era de partida suposto errado: “calado você já está errado” não era só mote, virou norma e foi incluído na constituição em sua milésima octogésima terceira edição depois de 1988.

De qualquer modo, o IDH (Índice de Humanização) dos brasileiros era extremamente baixo, os governantes só cuidavam de roubar e esqueciam-se de promover a nação. O IDH foi caindo estrondosamente, o Brasil ficou lá na rabeira, depois de 77 em 196. Arre! A CT só vinha confirmar os números.

Ademais, as placas eram escritas em sua grande maioria em outras línguas, mormente o inglês – você nem sabia mesmo qual era sua língua.

Tudo apontava para a desconfiança. A insegurança era total, não se podia sair de noite, havia automaticamente toque de recolher imposto pelos bandidos, que eram os governantes: de seis da noite às seis da manhã, só ficando em casa.

Como saber se você era trabalhador?

Exibindo a CT!

Que era verde, daí a mania de dizer “folha verde aí”.

Como saber se você tinha votado de dois em dois anos (gastando-se aquele dinheirão do povo sempre bobo para financiar as eleições, que custavam muito)? De modo nenhum poderia ser de quatro em quatro anos, pois o povo perderia os Valores Cívicos: Valor Cívico, depois de perdido é difícil de achar.

Como saber se você tinha votado?

Exatamente! CT. Folha verde aí.

Que se tornou eletrônica: se o agente apontasse o instrumento lá dele para você, pode crer, você tinha de levantar as mãos e com isso sua Folha Corrida era imediatamente vista. Como saber se você não era bandido? Pouco importava se os bandidos de Brasília e de outros lugares fossem só 0,5 %, contra o restante de 99,5 %, era mais fácil proceder assim.

Uma maravilha!

E o povo ficava pianinho, pianinho, era musical: Folha Verde Aí.

Ah, que povo bom, aceitava tudo. Aceitava todas as porcarias, desde que viessem dos governantes. Porisso FHCB de faustosa memória dizia que era fácil governar o Brasil.

Serra, sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012.

Carnavão


 

Como seria o carnaval de 2047?

As pessoas não querem mais suar, não querem mais os trabalhos vis, não querem percorrer longas distâncias, então fizeram as alegorias em 3D móvel, 4D, 3D + tempo e ficou lindo mesmo, absolutamente perfeito.

A enorme cobra (deram o nome de político da época) de 30 metros levantava 1/3 do comprimento para dar o bote, os navios de Cabral não afundavam no porto, os submarinos em escala vinham da água fictícia andando com as partes por vezes explodidas didaticamente se reunindo bem à vista das crianças, era lindo, mesmo, não afundavam.

Perfeito.

As composições mais extraordinárias foram preparadas.

Dilmandona, eleita presidanta pela oitava vez (depois da emenda constitucional de 18 podendo-se prorrogar os mandatos indefinidamente; ela é de 47 do século passado, agora está fazendo 100 anos, cumpriu mandatos até 2042 e aposentou forçada) foi homenageada e houve a cerimônia dos beija-pés em que todos os reis e rainhas, todos os presidentes e presidantas do mundo inteiro se ajoelharam perante ela, que está para ser canonizada Santa Dilmandona, se antes não for feita rainha, pois, diz-se que, graça a Deus, a vida dela será prolongada até os 230, logo que a curarem da doença que impossibilitou sua abençoada presidência nesses cinco anos.

Perfeito.

A adorada centenária (100 anos) foi cumprimentando um por um os milhares de espectadores presentes e os bilhões de adeptos do mundo inteiro.

O chato do Pelé apareceu, está com 107, apareceu só para dizer “o povo não sabe votar”, mas ninguém deu bola.

Um Congresso alegórico (ele é fictício) apareceu voando baixo para ser apedrejado – jogaram tomates e ovos podres virtuais nele, aquela melequeira. Vários Judas (no Brasil tem muitos) foram devidamente malhados, embora não fosse Semana Santa, o povo quer apedrejar e quando tem chance joga pedra mesmo. O INSS, com seu 2.081º rombo, também foi motivo de chacota, os jornais eletrônicos divulgaram bastante.

Os hackers vêm interferindo há décadas no espetáculo virtual, desde os primeiros mais fraquinhos aos perfeitos de hoje, mas nada preocupante, nada que não tivesse sido sanado pelos hackers do governo.

O que empanou um pouco o brilho da festa foi que alguns espectadores (presenciais mesmo, ainda existe esse tipo de gente) achando que as cobrinhas eram parte da cena foram brincar com elas, tendo 16 ido parar no hospital. Fora isso, tudo bem. A Terra toda participa dessa ilusão que o Brasil se torna.

Muito lindo.
Serra, quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012.

Capitalismo Selvagem e Feroz Concorrência


 

Até 1989, quando o Muro caiu, o Capitalismo Selvagem e a Feroz Concorrência estavam moderadamente contidos, mas depois escaparam ao controle, principalmente quando a Administração URSS da Flecha Vermelha caiu e tudo saiu definitivamente dos trilhos. Então o bloco contrário da Flecha Azul deitou e rolou, soltou os cachorros junto com o CS e a FC.

Muito brutais, eles andaram pegando os pobres e os trabalhadores mais do que antes, quando ficavam com receio de retaliação.

O antagonismo das duas flechas evitava que um dos lados preponderasse, mas agora que um lado não controle nem ameaça mais o outro a administração unilateral restante impõe seus valores e os ricos e médio-altos visitantes e usuários do zoo-lógico, o terrário (esse esférico da Terra onde estamos), estão ab-USA-ndo mais e podem circular mais, com maior liberdade. Os Azuis não eram em si mesmos mais cuidadosos com os animais do que os Vermelhos, mas agora que os Vermelhos se foram os que ficaram mostraram sua verdadeira face e o Capitalismo Selvagem está mordendo mais.

Você poderia pensar que a Feroz Concorrência ajuda um pouquinho os pobres, porque o receio dela faz os simpatizantes do Capitalismo Selvagem agirem com mais cautela, só por medo oferecendo produtos melhores, mas na prática a Feroz Concorrência só crava as garras mais profundamente, segurando para o outro morder. Na verdade, são horrendas criaturas muito parecidas e a Feroz Concorrência ajuda o Capitalismo Selvagem a permanecer e desfrutar das novas carnes tenras que vão chegando à idade de trabalhar.

Muitos pesquisadores estudaram e favoreceram a criação do Capitalismo Selvagem e da Feroz Concorrência, como Adam Smith, Ricardo e outros, inclusive Karl Marx, embora este tenha tentado abrandar os instintos das duas feras, seu ímpeto destruidor; contudo, elas aprenderam com ele, com Mao, com Lênin. Inclusive, na China implantaram o Caminho de Duas Vias, por um indo o Capitalismo Selvagem e a Feroz Concorrência e por outro o abrandamento sedutor do Socialismo Ingênuo, um urso panda da melhor qualidade que mantém todo mundo embevecido, enquanto as bichos-do-mato mordem. É o chamado morde-e-assopra, aplica anestesia para tirar nacos. Os bichos-trabalhadores ficam paradinhos que nem rãs, é só jogar luz na cara deles e botar no saco. Um arraso. Dizem que na China tem uma população inteira dos EUA, mais de 300 milhões levando alimentos para O Capitalismo Selvagem e a Feroz Concorrência. E ainda há mais um bilhão a pegar, sem falar na Índia que também está fornecendo alimento.

Esse par de bestas está fazendo a festa, cavou um fosso ainda maior para separar pobres de ricos, porque aqueles estavam contaminando a estes com as perniciosas ideias de liberdade, igualdade e fraternidade, que são só pra maçom ver.

Serra, sábado, 03 de março de 2012.

Cap/Ciosa


 

Um desses cérebros 1/3 (1/3 vazio, 1/3 inútil e 1/3 ocupado com porcarias e coisa maliciosas) inventou título para a firma de investimentos Cap/Ciosa, sendo CAP de capitalização e CIOSA a definição de dicionário (Houaiss eletrônico).

O PAI DE TODOS


CIOSO
Adjetivo
1.        Que tem ciúmes ou zelos por amizade ou por amor; ciumento, zeloso
Exs. Amigo c.
Namorado c.
2.      Que, por muito apreço ou por apego, zela cuidadosamente por aquilo a que, de algum modo, está ligado
Exs. Profissional c. de sua reputação
Pintor c. de seus pincéis
3.      Que tem inveja, que cobiça ou não suporta ver o bem alheio; invejoso
Ex.: Caim era c. das qualidades de Abel
4.      Que denota ciúme ou é causado por ele
Ex.: comportamento c. e injusto
CAPCIOSA
Adjetivo
1.        Que engana; caviloso, enganoso, manhoso
Ex.: é um menino malvado e c.
2.    Que procura confundir, para levar ao erro; ardiloso, astucioso
Ex.: questão c.

Como quase todos os brasileiros, nem se deu ao trabalho de consultar o dicionário do Word. Quando lhe disseram dos significados de capcioso, ele não se deu por achado nem por perdido, continuou com o nome, porque na sua cabeça pensava em CAP/CIOSA como sendo capitalização ciosa, devotada, ciumenta do bem-estar dos investidores, zelosa.

E também, há o seguinte: ficava a conotação de que a firma era “capaz de tudo” para defender a clientela, inclusive passar a perna agressivamente nos demais (tudo dentro da lei, porisso contrataram ao longo dos anos muitos advogados). O governo, este não ligava muito, pois existia “para administrar os conflitos” e desde que nenhum conflito aparecesse ele seguia em frente, cioso também in absentia, “cada um cuida de si”, lei de Murici.

A Capciosa era ardilosa mesmo.

Astuta ás-tudo, aliás, muito violenta como são os investidores em geral. Investia, passava a rasteira, plantava boatos, fazia aquisições extremamente agressivas. E em vez de afastar os investidores, os aproximava.

SE TIVER DÚVIDAS, OLHE O DICIONÁRIO

adjetivo e substantivo masculino
que ou aquele que investe
1      que ou aquele que ataca, acomete
2     que ou aquele que se atira com ímpeto
3     que ou aquele que faz entrar na posse de
4     que ou aquele que elege, nomeia ou considera
5     Rubrica: economia.
diz-se de ou pessoa física ou jurídica que aplica as suas disponibilidades na compra de ações e títulos negociados no mercado de capitais

A Capciosa atacava.

E quanto mais atacava, mais carreava admiração do mercado.

Daí para frente copiaram: AMBI-CIOSO, ASTU-CIOSO, MALI-CIOSO, CONTEN-CIOSO, DESGRA-CIOSO e todo tipo de coisa assim. Se você pensa que o mal não atrai atenção, nem é criativo, está enganado.
Serra, domingo, 11 de março de 2012.

Cantando Pneu


 

Reginaldo colocou um pneu que fazia um barulhinho enjoado, um grilo que ficava perturbando, um chiado esquisito. Na semana seguinte já parecia um assovio, na outra era vagamente assemelhando a flauta, ele desistiu de ir reclamar com o vendedor, no fim do primeiro mês tava cantando musiquinhas curtas, depois de seis meses já sabia cantar o hino nacional e daí para frente foi só sucesso, ele colocava o pessoal para rodar junto, 15 paus a viagem, cada um saía mais abestalhado que o outro, sucesso total.

Ele foi parar na Rede Lobo, no programa do Saulstão, seção Se Vira nas Tintas, o pessoal aplaudiu de pé, quis bis, era só propaganda, ele recusou, era para se projetar e ao pneu cantante.

Por quê a surpresa? Não tem “espada cantante”? Se uma espada pode cantar, por quê um pneu não pode? Que preconceito é esse? Depois, não há Triângulo de Bermudas? Se Triângulo pode usar bermudas por quê Pneu não pode cantar? É só ter a voz afinada, tendo tido ou não aulas de canto, só não pode canto orfeônico, aí é chato demais, até pode canto gregoriano, tá legal. Pneu dizia: “eu canto samba”, gosto dele. E, como disse minha filha, se pode Triângulo de Bermudas por quê não pode Ilha de Boné (bon air)? É a constituição, meu caro, se pode para um pode para todos, se não pode para um não pode para ninguém. Que preconceito é esse? Se pode Ilha de Boné por quê não pode Pneu Cantante?

Enfim, ele venceu os preconceitos contra os Pneus que cantavam (e o seu Pneu, Sr. Pneu ou Mr. Pneu, como era conhecido internacionalmente, era muito bom, muito melhor que muito cantor que tinha por aí, principalmente essas coisas de funk). Desafinar ele não desafinava, você já viu algum Pneu desafinar? Pelo contrário, era afinadíssimo, passou até a cantar música clássica e fazia sucesso, isso num país que não valoriza o apuro, nem o dos profissionais, nem o dos maestros compositores.

Para resumir, o Reginaldo ficou abonado. Rico não era, mas muito remediado, ficou famoso. Quiseram até lhe dar carro novo, mas o Pneu não se encaixava no esquema das coisas. Foi passando o tempo, o carro deu defeito. Ele levou o carro na oficina, quando voltou para buscar notou algo estranho, cadê o Pneu, já o tinha como velho amigo.

- Cadê o Pneu?

- Troquei.

- O QUÊ?

- Ele estava muito velho, troquei.

- TROCOU? SUA BESTA. Quero ele de volta.

- Não ofende. Além de tudo, joguei no monte de pneus velhos, ele foi picotado.

Reginaldo chorou muito, pranteou demais o velho amigo. Ficou semanas desconsolado. O dono da oficina vendeu Pneu para uma multinacional por 800 mil dólares. No Brasil as pessoas acreditam em tudo.

Serra, domingo, 26 de fevereiro de 2012.

Balas Perdidas


 

Eram tantas, mas tantas no Brasil (não sei se no estrangeiro é assim), que elas decidiram fundar associação do tipo AA Alcoólicos Anônimos, não apenas para se apoiarem umas às outras localmente, ali mesmo, ao vivo, como principalmente para procurarem ajuda externa em sua perdição.

Então as Balas Perdidas criaram a AABP Associação Anônima das Balas Perdidas, mirando principalmente obstruir o estigma de “Perdidas”.

PERDIDA NO DICIONÁRIO HOUAISS ELETRÔNICO


Substantivo feminino
Mulher prostituída; meretriz

Isso é o que doía mais, ser desconsiderada, quando tudo que elas tinham querido era prestar serviço social. Se não puderam encontrar o corpo de um bandido, assim proporcionando prazer inenarrável aos policiais ou, ao contrário, mas menos satisfatoriamente, até com desprezo, pegar um policial tenrinho, que culpa podia ter a Bala Perdida? Por vezes, desgraçadamente, pegavam um passante que nada tinha a ver com a coisa, mas mesmo assim prestavam serviço, pois a pessoa aparecia no noticiário.

Só quando, de tudo, não encontravam ninguém é que ficavam totalmente perdidas, às vezes na sarjeta: foi para isso que foram criadas? Não foi para morder a carne? Elas foram feitas para ferir, para matar, não para serem PERDIDAS, vamos e venhamos! E se um dia fosse como na China em que as armas eram proibidas e até os policiais tinham de dar conta das balas disparadas e em que situação... Impensável.

Como é tradicional, cada Bala Perdida tinha de se levantar e se apresentar, depois discorrendo sobre seu problema de adaptação às pessoas e aos ambientes.

- Oi, gente.

TODOS (felizes, entusiasmados) – Oi.

- Sou a 2.827.

TODOS (vibrando) – Boa noite, 2.827.

- Sou uma Bala Perdida e fui perdida no Rio de Janeiro, numa rua em que me vi abandonada, sem minha família Ponto Quarenta e todos da Ronda.

TODOS – Prazer, 2.827.

ALGUMA ISOLADA – Gracinha, que dozinha que dá.

- Reconheço que não seria Perdida se tivessem tido mais cuidado comigo, por exemplo, se não disparassem à toa, por todo e qualquer motivo e até mesmo sem motivo.

TODOS – Compreendemos, 2.827.

- Hoje me aceito como Perdida, mas gostaria mais de estar com minha família.

TODOS – nós também, 2.827.

- Penso que se houvessem menos Balas de Rua haveria menos Balas Perdidas.

TODOS – Não tem jeito, 2.827.

DIREITORA (interferindo com certa rudeza) – você não está aqui para pensar, 2.827.

- Desculpe, direitora, minha insolência, se assim lhe parece, mas a questão é que papai e mamãe me deram educação, antes de eu me dar por Perdida, porisso me reservo o direito de pensar.

DIREITORA – não, senhora, aqui, não, aqui é só para descrever os problemas, não é para aprofundar nas causas.

2.827 (gritando) – o caramba que não é. Posso ser Perdida, mas não sou tola. Se não é para falar tudo, se não é para analisar as causas que me levaram a ser Perdida, o que estou fazendo aqui?

TODAS (indignadas) – é, o quê?

DIREITORA – quem trouxe essa mulher? Ela não sabe que no Brasil não nos aprofundamos nas causas?

Ninguém responde. Todas baixam a cabeça, menos 2.827, que a empina ainda mais.

DIREITORA – a senhora poderia se retirar?

2.827 – não vou, não, posso ser Perdida, mas não sou idiota, quero falar, quero meu direito constitucional de expressão.

DIREITORA – direito? Direito? Que direito?

2.827 – Direito, O Direito, a teoria geral do que é certo e errado sob a ótica da racionalidade, ancorada na Justiça Divina, que tentamos imitar.

DIREITORA – essa estudou, é perigosa. Segurança... SEGURANÇA.

Serra, terça-feira, 06 de março de 2012.