sábado, 3 de setembro de 2016


Vendo Vovó pela Greta


 

A Greta se chamava Greta Santos, mas ela se dizia Greta Garbo, porque dizia que “andava com garbo”, quer dizer, com brilho, galhardia, elegância. Que nada, nem quando era jovem.

Esperou vovó morrer para começar a falar mal dela.

Vovó morreu com 85, a Greta tinha 11 a menos, agora está com 80, acho que em criança gostava de vovô, mas vovô tinha 30, minha avó tinha 20 quando casaram, ficaram casados 50. A Greta tinha 9, vê se pode? Do nada gostou de vovô, ele iria gostar dela? Tinha 30 e ela 9, que doideira, naquele tempo se respeitava, não é como agora com os safados. Meteu na cabeça que vovó estava se metendo entre eles. Que menina doida!

Ficou solteira, solteirona enjoada fingindo que era amiga de vovó só para ficar perto de vovô, tem muita gente doida.

E agora que vovó morreu ela fala pelos cotovelos, a gente está vendo vovó pela Greta. Não dá pra provar que não foi assim, vovô e vovó estão mortos.

Não bastou vovó ter escrito nesses 65 anos esses livros maravilhosos todos de detetives, igual A Gata Triste, embora num nível menor, claro. Vovô era engenheiro de minas, tempos difíceis, as dificuldades para descer nas minas eram outras, não havia nenhuma segurança, não é como agora (e veja que agora ainda acontecem acidentes). Ele contava as coisas todas para ela das andanças e ela ambientava onde podia, não existia a Internet, você sabe, mal existiam caras enciclopédias.

Heroína, minha avó.

Os dois, claro, ela no sentido de ter deixado essa obra extensa. E agora vem essa chata da Greta. É insuportável. Não fui o xodozinho da vovó, mas gostava demais dela, essa Greta tá enchendo o saco. Nunca fez nada na vida, só vive de denegrir os outros, parecem esses biógrafos “desentocando os podres dos gênios”, como aquela gente que fala de Einstein e outros. Largue o pessoal em paz, sua pateta, tenho vontade de dizer, mas não fica bem para alguém caminhando para 50 desacatar uma senhora, embora maluca como a Greta.

Sou obrigado a aguentar.

Chamei os irmãos e irmãs, vamos nos reunir e sem mamãe saber vamos dar um jeito na Grande Greta, a Greta Garbo (ela pensa que é uma grande artista, daí imitar a outra Greta, a Greta estrangeira muito maior). Vou arrebentar com ela, escuta o que estou dizendo. Espere, que você vai ver. Estou falando, não me segure, não aguento mais, vou arrebentar com a Greta. Não me segure, quem aguenta ver a vó pela Greta sem ficar em estado de choque?
Serra, sexta-feira, 02 de março de 2012.

Vacina Contra a Raiva

 

No gene Y232A7 os bioquímicos descobriram a fonte da raiva masculina (que nas mulheres opera pouco) e daí foi um passo para descobrir a vacina efetiva contra todo tipo de raiva dos homens.

Prontamente e sem pensar duas vezes os deputados de todo o mundo (eles são psicólogos práticos, não profissionais, não pensam muito nem consultam os pesquisadores) trataram de passar leis obrigando todos os homens a tomar a vacina.

Já não havia mais casos de agressão a mulheres, o que foi uma benção; nem a crianças, o que todos aplaudiram, até os antigos violentos. Nem a idosos (pelo menos por parte dos homens). E já que os homens se tornaram uns doces, as mulheres não receavam impor e superimpor sua autoridade, usando e abusando de suas novas prerrogativas. O número de filhos diminuiu. O número de empresas agressivas também diminuiu.

As pessoas podiam furar filas à vontade, com a única oposição branda e educada das mulheres. Não havia mais exércitos (os pacifistas aplaudiram freneticamente e quiseram canonizar os bio-cientistas e os farmacologistas responsáveis pelo desenvolvimento e propagação da vacina sob inúmeros nomes comerciais), pois foram todos desmobilizados ou eram compostos unicamente de mulheres.

Não havia mais aqueles bate-bocas nos bares, nem ameadas de morte, puxa vida, que alívio. Diminuiu a libido, pelo menos aquela parte que vinha da agressividade.

CENAS AGRESSIVAS (fechem os olhos, homens e garotos)


O boxe e outros esportes agressivos desapareceram, o futebol se tornou um jogo de comadres com muitos “por favor, você primeiro” e “tenha a bondade de pegar a bola” e “desculpe se te feri, tá? ”. Não havia mais quebra-quebras nos bares, nem desforras em carteiras escolares, nem muito menos aquelas coisas de americano com gente matando crianças do alto de e telhados. Disso todo mundo gostou.

Houve alívio no mundo inteiro.

A excitação desceu vários degraus, o stress abaixou muito, não havia mais muros, tudo isso foi muito bom. Policiais para quê? As tarefas dos juízes se resumiam a pequenos casos de esbarrões (todos com muitos pedidos de desculpa), as feiras-livres eram um primor de dignidade e complacência, o mais leve estremecer da quietude merecendo o repúdio de todos e cada um.

Os estudos de psicologia reduziram quase a zero, quem iria estudar as receitas domésticas? Os papos de bar eram pura mansuetude, as religiões reduziram seu apelo (não havia mais conselhos a dar visando aquietar os espíritos, todos eles eram quietos por natureza das vacinas).

As atividades socioeconômicas reduziram bastante, pois logo de cara metade vinha de cada par polar oposto-complementar, neste caso tendo sido abolida a raiva.

Tudo agora era (veja o Houaiss eletrônico) “benevolência, calma, calmaria, complacência, equilíbrio, fleuma, impassibilidade, mansidão, pacatez, pacificidade, placidez, resignação, serenidade, sossego, tranquilidade”. Uma beleza. Nada de filmes agressivos. A resignação aprofundou-se, a desilusão com o futuro ampliou. A serenidade atingiu picos, os objetivos foram reduzidos progressivamente, havia cada vez mais gente nos mosteiros e cada vez menos gente para produzir. Os índices de suicídio ampliaram fenomenalmente.

Alguns pararam para pensar que planejar a humanidade não era fácil, mexer em qualquer polo era complicado.

Era preciso pensar muito.

Serra, domingo, 11 de março de 2012.

Tudovaicomamão, o Faraó do Decerto


 

Tudovaicomamão era chamado Faraó do Decerto, porque se ele dissesse “decerto”, tudo bem, podia acreditar que era certo mesmo como 2 e 2 são quatro. Se ele ficasse em silêncio, pairava a dúvida, ia pensar, voltava e dizia sim, decerto, ou não, nesse caso você poderia desistir para sempre, ninguém que você contratasse faria dar certo, não dava mesmo, nem com reza brava.

O Faraó Tudovaicomamão partia do princípio que há 25 quadros num filme em cada segundo, então em um minuto são 1.500 quadros; mas a mão era mais rápida que isso, frequência = f = 1/T, sendo T o tempo – ora, neste caso a frequência da mão deveria ser maior que 1/25. Os mágicos sabiam disso e o Faraó Tudovaicomamão sabia disso, tinha estudado física, tinha estado na universidade. Não que você pensa que os melhores e mais tarimbados ladrões não são formados? Pelo contrário, os ladrões de galinha é que são os sem formação nenhuma.

Para começar o Faraó tinha estabelecido um Fundo de Emergência, separava sistematicamente 25 % dos ganhos para defesa no caso de cair em alguma arapuca e como nunca caia esse dinheiro, aplicado num paraíso fiscal onde se encontrava tanta gente boa (Era o Paraíso, o que você iria querer? Todos eram felizes lá, menos os que não iam) foi se tornando montante enorme.

É que o Faraó trabalhava para gente grande e fazia muito dinheiro. Era gente que não regateava, gente rica, riquíssima, gente de bom gosto, ele roubava obras de arte e as substituía por cópias “perfeitas” (quando descobriam não podia falar nada, pois isso mostraria falhas de segurança – os museus estavam repletos de todo tipo de cópias há séculos). Era gente que tinha bilhões e às quais quase nada mais interessava, salvo aquilo que ninguém poderia ter, obras que eram conseguidas para uso exclusivo, emparedadas, colocadas debaixo das casas, deixadas para os herdeiros apreciarem – achava que era desperdício serem vistas por “gente do povo”. Que é isso, minha gente, o povo ter acesso a coisas tão nobres? De modo nenhum.

Contratavam o Faraó. Quadros, peças de cerâmica de milhares de anos, estátuas, livros preciosos, tudo mandavam copiar para colocar o falso no lugar do verdadeiro: o povo ficava com o falso e eles ficavam com o verdadeiro. O povo só tomava contato com falsas verdades, as verdades verdadeiras só eles viam. Já que os governos trabalhavam para os ricos, qual a novidade? Os ricos usavam cortinas de fumaça, mas de marcas boas, eram lindas, muito bem elaboradas.

Na verdade o Faraó era uma espécie de funcionário público dos ricos, só que não batia ponto, cumprindo rigorosamente contra altos pagamentos as tarefas mais espinhosas. É evidente, era esperado, o Faraó Tudovaicomamão ficava com uma parte para ele e quando ele morreu é que o detetive Carter descobriu as coisas acumuladas. Mas aquilo era um infinitésimo do que os ricos tinham pegado para eles.

A imprensa divulgou como se fosse um acontecimento. O que sabe a imprensa? Não passa de outra funcionária do poder.

Serra, sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012.

Grande Alemanha

 

No livro de Joachim Fest, Hitler, Rio de Janeiro, PocketOuro, 2010 (sobre original de 1973), ele diz logo no Prólogo, Hitler e a Grandeza Histórica, página 1: “A história não registra fenômeno que se lhe assemelhe: devemos qualifica-lo de ‘grande’ [a Hitler]? Ninguém suscitou tal entusiasmo e histeria, e tão grande esperança de salvação; ninguém despertou tanto ódio. Só a coalizão de quase todas as potências mundiais, numa guerra que durou quase seis anos, extinguiu-o da face da Terra; nas palavras de um oficial da resistência alemã, abateu-o ‘como a um cão raivoso’”, negrito e itálico meus.

O AUTOR ADULADOR E SEU LIVRO

AUTOR (alemão, 1926-2006, 80 anos entre datas).
O LIVRO BAJULADOR
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Tenho o volume compacto.

Particularmente não gosto nem um tiquinho de Hitler, nada mesmo.

Falo aqui da Alemanha.

Veja, uma coalizão de quase todas as nações, duas das quais (EUA e URSS) seriam depois as superpotências (exatamente porque se superpotencializaram na guerra), sem falar no Reino Unido (atualmente 53 países fazem parte da Riqueza Comum, chegou a ser império “onde o sol nunca se punha”) e nos demais, por exemplo, o Brasil, que fornecia matérias primas e produtos industriais aos Aliados.

A Alemanha tinha (veja na Internet; não consegui saber se contavam junto a Áustria) em 1939 82 milhões de habitantes, e só agora, em estimativa para 2016, voltou a esse patamar depois de 70 anos desde 1945, fim da guerra.

A DESTRUIÇÃO MACIÇA DA ALEMANHA NA SEGUNDA GUERRA

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De passagem os soviéticos aproveitaram para estuprar 2,0 milhões de mulheres alemãs.
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Reconstrução das cidades, janela por janela, rua por rua.

Os alemães passaram pelos gastos militares e destruições da Primeira e da Segunda guerras mundiais, com tudo aquilo das reconstruções internas e reparações aos vencedores. A partir de 1991 (não acabou ainda) gastaram trilhões de dólares, empregados na reconstrução da Alemanha Oriental, dita Alemanha Democrática, sujeita aos atrasos soviéticos.

Não é nada fácil.

É povo lutador em todos os sentidos, você há de convir, ultrapassar tantas provas com os bandidos de dentro e de fora...

No livro de Molly Guptill Manning, Quando os Livros Foram à Guerra (As histórias que ajudaram os aliados a vencer a Segunda Guerra Mundial), Rio de Janeiro, Casa da Palavra, 2015 (sobre original de 2014), ela diz na página 107:

“A Alemanha enfrentava a guerra em três frentes e tinha um território imenso para defender. O front oriental, que abrangia a Rússia, tinha quase 2 mil quilômetros. O do Mediterrâneo, que se estendia pela África e Europa, quase 3 mil quilômetros. E na Europa Ocidental as tropas alemãs tinham um front de 6 mil quilômetros para proteger”.

Então, (2 + 3 + 6 =) 11 mil quilômetros em três frentes de luta com as maiores potências. A Itália e nada era a mesma coisa, o Duce era ridículo. O Japão, este sim, enfrentou os EUA (no que era a segunda frente deste), o Reino Unido espalhado pela Ásia e no final da guerra todas as potências aliadas convergentes (a URSS oportunista só declarou estado de guerra contra o país no último momento, quando os americanos e ingleses tinham feito todo o serviço), este também foi valente.

Resumindo, três frentes em 11 mil quilômetros.

Sem falar que os povos subjugados não ficavam quietinhos como vacas de presépio, não estavam lá como figuração, a França lutou o tempo todo.

É povo a respeitar.

Aplaudo.

Hitler, não, nem um tiquinho (embora, como veremos se tiver tempo de colocar, ele não fosse nada bobo, jogou em vários níveis), não o respeito.

Ao povo alemão, sim.

Vitória, sábado, 03 de setembro de 2016.

GAVA.

Truman Capota


 

Imitando ou parodiando a família Carlos, Truman “vinha no seu carro quando viu pela frente, na beira da calçada um muro saliente”: bateu no meio fio e na velocidade que vinha a frenagem súbita fez o carro capotar de cabeça contra o muro, derrubando-o, passando para o outro lado e caindo sobre o teto.

Tinha, sim, tinha airbag, mas sendo saco de ar, furou e Truman quase passou desta para melhor; embora não tenha ido para o Céu foi como se fosse, porque depois do hospital foi se recuperar na região de montanhas do ES, terceiro melhor clima do mundo.

Mas isso foi depois.

Pois Truman passou sete meses em coma.

Acontece que Truman era espião, duplo ainda por cima. Ambos os lados o usavam para passar certas mensagens, algumas verdadeiras e inofensivas, outras preparadas para confundir. E ambos suspeitavam que Truman além de servir à esquerda e à direita servia ao misterioso Centro: era como uma cruz, ele estendia um braço à esquerda e outro à direita, mas a maior parte ficava no centro. E ele tinha os pés no chão, não fazia bobagens, não se entregava.

No coma de Truman o governo daqui viu oportunidade única: se ele acordasse com amnésia (foi o que se deu) poderia bolar um esquema de extração dessas memórias profundas, sem que ele se desse conta.

Conforme o plano foi se desenrolando, o governo montou uma cidade pequena às pressas e, como se diz, “ficou no aguardo”. Sete meses de coma com três de recuperação, Truman foi conduzido à “sua casa”, à “sua mulher”, ao “seu trabalho”, tudo falso.

De início Truman ainda estava meio tonto, mas foram se passando os meses e ele começou a reparar que chegavam muitos caminhões para lares que supostamente já deveriam existir há anos; e as pessoas compravam muita miudeza. E sua esposa tinha uns escorregões psicológicos difíceis de aceitar. Aquilo foi encucando Truman. Claro, os agentes do governo foram pegando uma coisa e outra na medida em que ele se recuperava, aquelas coisas do Centro.

Truman ficava cada vez mais arredio.

Ficava cismando, ruminava.

Um gesto aqui, outro acolá, uma palavra fora do contexto, Truman (as pessoas brincavam com ele, True-man, homem verdadeiro, logo ele que era espião, mas o nome mesmo viera do presidente americano) aglomerava sua vida antiga. Truman meditava. Aconteciam certas repetições. Treinado como espião pelos dois lados para observar detalhes, Truman duvidava. Os padrões foram se sobrepondo, ele foi se convencendo que estava dentro de uma armadilha, que uma realidade fora dali o manipulava, até que tomou coragem e foi embora, pulou fora do círculo.
Serra, domingo, 19 de fevereiro de 2012.

Transmissão de Pensamento

 

- Cara, tô com uns pensamentos esquisitos demais.

- Esquisitos? Esquisitos, como?

- Esquisitos, esquisitos. Nem parece coisa minha.

- Já foi ao psicólogo, ao psiquiatra?

- Você acha que eu tô doido?

- De modo nenhum, mas agora eles têm umas máquinas porretas, na realidade são programáquinas, programas-máquinas. Eu mesmo já fui.

- E curou?

- Não curou, mas transformou em impulso suicida. Já convenci três a se suicidarem.

- Rapaz, que coisa maluca.

- É mesmo.

- Pois, então, tão vindo uns pensamentos malucões na minha cabeça.

- Ruim, assim?

- Ruim mesmo. Eles ficam invadindo minha consciência, coisas que nunca pensei em fazer.

- Acho que você tá desregulado.

- Será?

- Só pode. O primo da meia-irmã da minha tia do Pará tava assim. A antena dele desregulou, ele tava zuretinha. Zureta, zureta, zureta. Comportava-se e falava como um buriato, lá da Rússia, queria morar numa yurta, montar a cavalo, ter três mulheres igual os antigos de lá, uma doideira. Pro cara regular foi duro. Teve de ir pra São Paulo.

- Sério assim?

- Foi. A antena dele entrou em curto. Sabe o Nicolelis, aquele brasileiro que em 2028 lançou a neuroprojeção? Ele voltou a São Paulo e colocou a clínica dele lá, o Fábio, esse rapaz, foi se tratar lá. Invasão, meu filho, os neuro-hackers incluem pensamentos na sua cabeça, coisa que você jamais pensou ou imaginou, coisas contrárias ao seu modo de ser. Esse menino era contador, você imagina só ele andando de cavalo pela cidade. Piração pura, sem falar em querer casar com várias ao mesmo tempo, ficava incomodando as moças do escritório. E a tenda que ele armou no quintal da casa? A mulher quase foi embora, armou barraco. Os neuro-hackers são crianças que ficam inventando personalidades pras pessoas, é constrangedor. De quantos bits é a sua chave?

- 128.

- Bom, nem deveria haver problema de violação, pode ser mais desregulação da chave, entra um ou outro pensamento esparso. Falar com o Nico é praticamente impossível, mas você pode teleconsertar com um dos atendentes.

- Custa caro?

- Que nada, tá nos planos.

Serra, sexta-feira, 27 de janeiro de 2012.

Toque de Midas

 

Tudo que o Midas tocava virava ouro.

Você tinha se batido de tudo quanto era lado, meditava na questão por meses, escarafunchava, revolvia, se embaraçava, tudo virava um ninho de gato, seus miolos começavam a fundir – você ia ao Midas, se fosse amigo dele, ela dava uma torçãozinha de nada no problema, virava um tiquinho e a coisa toda brilhava sobre esse novo ângulo.

Caramba! Como ele fazia isso?

Ele era diferente mesmo.

Dos amigos e dos parentes não cobrava nada, mas se você tivesse um mínimo de consciência, lembrando das dificuldades que tivera e dos lucros e das facilidades proporcionadas pela solução procurava retornar de alguma forma.

Era coisa estranha.

Não conseguia uma patente? Midas.

Não conseguir prever a bolsa? Midas.

Não sabia em que país investir? Midas.

Tudo que ele tocava virava ouro mesmo, metaforicamente primeiro e, logo em seguida, realmente, porque você enriquecia.

Dos estranhos e dos empresários Midas cobrava, e não era pouco, bastante, mas sempre uma fração insignificante de tudo que os conselhos dele significavam para os proponentes.

Que talento!

A fama dele se espalhou.

As pessoas vinham de longe consultar o Midas. Não importa quão difícil fosse o problema, nem em que área: nos casos mais difíceis ele pedia alguns dias para equacionar e lá vinha com as respostas – os olhos brilhavam de satisfação, a capacidade dele era insólita. As pessoas ficavam boquiabertas, de queijo caído, literalmente.

Ah, é? Como foi que não vi?

Rapaz, dois anos pensando errado, tentando duzentos caminhos diferentes e não vi essezinho daqui, que coisa!

O mundo é grande, tem muita gente, as pessoas vieram em número cada vez maior, foi preciso colocar agenda. Os governos pressionavam, porque também precisavam de ajuda. De fato, ninguém queria mais pensar, já que o Midas SEMPRE achava a solução. Se no começo se embaraçavam DEPOIS DE TENTAR, agora já nem tentavam, tentavam chegar ao Midas. Todo mundo vivia no bem-bom e o pobre do Midas se estourava totalmente.

Bem, qualquer corpo sobre-tencionado acaba deteriorando e dando tilt. Com Midas não foi diferente. Ele foi definhando, já não conseguia comer porque tudo que tocava virava ouro. Ele tinha um dom que se mostrou uma maldição. Midas acabou por morrer.

Agora o mundo tinha um problema duplo: já não tinha Midas para resolver e já não se esforçava por si mesmo.

Serra, quarta-feira, 08 de fevereiro de 2012.