sexta-feira, 2 de setembro de 2016


O Melhor Amigo do Cego

 

- Meu filho, você ouviu a campainha, vá até a janela ver quem é, faz favor.

- Tá bem, vô.

Vai e olha.

- Vô, é aquele homem que já esteve aqui na terça.

- O Ciro. Tá bem, você abre a porta? Depois você pode ir pra cozinha, ou melhor, pode ser que ele queira água, vá para o seu quarto. Não fique ofendido, querido, algumas pessoas não entendem, tem preconceito.

- Tá bem, vô, a gente já conversou sobre isso.

Ciro entra, conversam longamente. Combinam preço, vai saindo.

- Bonito, seu cachorro. Eu o vi da janela.

- É verdade, muito lindo, é o meu amigo mais fiel, o Jonas. Entrego as equações dentro de três meses, tudo bem?

- Tudo bem, se você conseguir adiantar 15 dias tem um bônus. Como você faz, quase cego? É uma coisa meio sigilosa, porisso trouxe em mãos.

- Vou tentar. Ah, tem quem me ajude. Pra pensar uso a cabeça e há quem digite. De qualquer modo, nossos computadores são totalmente travados, não tem qualquer ligação com o exterior, você vai ter de voltar pra pegar. Puxe a porta ao sair.

Vai embora.

- Vô, por quê você não pode me mostrar?

- Bem, querido, já conversamos outras vezes. O seu pai, meu amigo, antes de morrer deu você para mim, você já tem 30 anos, os cachorros só vivem 12, 15, 18, por aí, sua vida foi dilatada, ele era biólogo da linha de frente da tecnociência, eu era ciberneticista, juntamos nossos talentos, ele encompridou sua vida e eu dilatei sua consciência. Como não dava para aumentar sua cabeça seu cérebro expandido foi distribuído por todo o corpo, quando as células se renovam não expulsam os nódulos de tecnomemória. Rinaldo morreu e deixou você comigo, depois que minha esposa morreu e fiquei quase cego. Nós já falamos disso.

- É que as vezes eu esqueço, vô.

- Não tem problema, querido, tá tudo bem. A gente não podia aumentar muito sua memória e inteligência porque as pessoas se sentiriam ameaçadas e começariam a perseguir todos os de sua espécie e das demais tecnoexpandidas. Esse programa começou em 2032 e já dura 50 anos. Não há tanta gente assim sabendo dele, pois os governos proibiram a divulgação, porque essas novas espécies são usadas de muitos modos no ar, na água, na terra e inclusive nos transmissores e acumuladores de energia. De fato, há TANTAS aplicações que as pessoas nem acreditariam.

- Então vocês modificaram minha laringe, né, vô?

- É sim, entre outras modificações. O Rinaldo te amava muito. Por debaixo de suas patas colocou mãos e pés verdadeiros, só que as pessoas não podem saber disso, não saberia te perder, eu te amo muito, você sabe.

- Né que você não pode me perder, vô?

- Não posso, não, querido, quem conversaria comigo? Já tenho 85.

Jonas ficou assustadíssimo.

- Você vai morrer, vô?

- Um dia, querido, mas não agora, posso esperar viver mais uns 45 anos ou mais, conforme avancem as pesquisas, talvez 70, hoje em dia a gente vive muito.

- Por quê você não deixa operarem seus olhos, vovô?

- Bem, querido, a Gerusa morreu e eu a amava muito. O Rinaldo, que era um dos meus melhores amigos, morreu esmigalhado, há outros, mas pensei bem e o silêncio é precioso para mim, além de que eu adoro conversar com você, porisso precisamos esconder sua idade, de vez em quando você “morre”, vou noutra cidade buscar um cachorro de dois anos, certo? Sinto tantas saudades que pra eles eu clono você.  E sempre mudamos seu nome, certo?

- Entendi, vovô, você engana eles direitinho.

- Falar nisso, você já leu os livros que recomendei?

- Já.

- Bem, de noite vamos estudá-los, está com paciência?

- Tô sim, vô, é muito legal, você me ensina tudo, né, vô?

Faz um carinho na cabeça dele, abraça-o.

- Sim, querido, eu te amo muito. Você é o meu filho da velhice.

- Mas dos seus outros filhos não me escondo, né, vô?

- Não, meu filho, deles não, eles entendem e te amam também. Vamos digitar?

- Vamos, vô.

Serra, sexta-feira, 03 de fevereiro de 2012.

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