domingo, 30 de outubro de 2016


Parte São

 

O camarada entrou na loja pisando duro.

O dono já esperava de braços cruzados, era sempre assim, já estava acostumado, está no jornal, não leu, pau comeu, propaganda antiga, certinha.

CAMARADA (com o cachorrinho no colo) – vim devolver, com pena, né, o garoto pegou gosto, ficou chorando. Ou pega de volta ou devolve metade, vamos ter de cuidar o resto da vida.

DONO – tem de ler.

CAMARADA – quê?

DONO – tem de ler.

CAMARADA – quê?

DONO (paciente) – lá fora, tá na placa, tem de ler.

CAMARADA – o que que tá na placa? Tem de ler o quê?

DONO – a placa, ora, a placa, tem de ler com atenção. Deixe o cachorrinho aqui e vá lá fora e leia devagar, pense, leia de novo, faça a gentileza.

O camarada foi fuzilando.

Voltou.

CAMARADA – tá escrito Parte São.

DONO – então?

CAMARADA – então o quê?

DONO – cachorrinho, parte são, parte não-são, doente, porisso o senhor pagou só metade do preço convencional, são cachorros e outros animais que pegamos na rua, tratamos dos maus-tratos, eles são cuidados, vendemos para pessoas amorosas ...

CAMARADA (estupidificado, perdendo a vantagem de ter dado o golpe de comprar pela metade, mas sofrendo o apelo dos “cuidados” e do “amorosas”) – sim, entendi, parte são, não é partição, com S, não com Ç.

DONO – não, com Ç não, por que seria? Que tipo de nome seria esse?

CAMARADA – sei lá, ué, tem todo tipo de coisa.

DONO – não, aqui não. Por exemplo, do lado tem a loja da minha mulher, Sara Banda, só sara uma banda, metade, a outra metade não, já veio gente aqui nos dias de folia de carnaval, queria que a gente abrisse, pensou que era “sarabanda”, pensando que era banda zoneada, as pessoas pensam cada coisa. Não. Tá escrito, Sara/Banda, só um lado, por exemplo, se o senhor tiver chifres (Deus nos livre), só cura o senhor, sua mulher é outra coisa, se quiser definitivo tem de pagar para os dois.

CAMARADA (interessado) – ah, faz isso?

DONO – faz, aqui pra nós, ela tem muito serviço. Serviço de encosto, serviço de pinto dormindo em cima do saco, serviço de lado esquecido (marido que esquece de aniversário de casamento), de tudo. Como o senhor levou o cachorrinho, já estava aplaudindo: “alma boa”.

CAMARADO (aproveitando a deixa) – lá isso é (pegando o cachorrinho). Vou ficar. Depois eu volto com a mulher. Tem ração?

Serra, sábado, 06 de fevereiro de 2016.

GAVA.

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