sexta-feira, 23 de dezembro de 2016


Reclamações

 

                            Um colega de serviço, AMM, disse que eu reclamo muito, e isso me fez pensar numa das oposições/completações, otimismo e pessimismo. Evidentemente o modelo diz que nenhuma é, e as duas são boas e ruins; os extremos polares, onde cabem o “ismo” (sinal evidente de doença do info-controle ou comunicação mais hábil, mais apta, agoraqui da humanidade), são ambas perigosas (mas trazem muitas promessas – a Natureza usa tudo a seu favor).

                            A Natureza é só uma regra apertadíssima, minimax em termos de sentimentos, sem folga, para o crescimento do info-controle; ela descarta imediatamente, sem raciocínio, o que quer que seja ofensivo à continuidade. Neste caso, pode descartar o otimismo ou o pessimismo, ou ambos, conforme os ciclos. O resultado é que ambos podem ser bons e ambos podem ser ruins, ou pode-se usar qualquer mistura dos dois, ou ficar no meio, conforme a utilidade no ciclo.

                            Posto isso, devemos raciocinar que a pessoa que reclama, ao contrário do que pode parecer, é o otimista, porque o pessimista nunca reclama – para ele tudo está bom sempre, e ele se esconde no mutismo. É o caso do AMM; então ele cai na bebedeira, na idolatria da ausência, da perda da batalha antes dela começar. Era pessimista Arjuna na batalha em que no Bagavad Gita Krishna se põe a convencê-lo de que o não-movimento, ahamsa, não é necessariamente bom. Arjuna, assustado, pondera que qualquer movimento seu haverá de destruir algo ou de matar alguém que ele ama, ou seja, a sim mesmo, ao que o Senhor K diz que o mundo é dor, mas é essencialmente movimento, portanto busca do equilíbrio. Não fazer é o mesmo que esquecer as obrigações, é não lembrar que a dor traz, do outro lado, a satisfação, o prazer. Não criar significa, no fundo, ficar no zero do equilíbrio, no que é, como disse a Clarice Lispector, o vazio do equilíbrio. Equilíbrio também tem hora e lugar, ou de outro modo tudo seria só uma reta, sem pulsação do corpo morto; o silêncio do cemitério não sendo conflito, mas também não sendo nem informação nem controle.

                            A questão é que quem reclama ainda está lutando pela vida, enquanto quem não reclama já morreu. Você pode pensar que esse morto ou semimorto, esse zumbi, não serve à Natureza, mas estaria errado: estar quieto, parado, calado, pode fazer sobre-viver para ter descendência. Não é senão porisso mesmo que há gente pessimista no mundo – eles têm valor de sobrevivência, realizam isso que chamei de “corte darwiniano”, o que cinzela a Vida geral e a Vida-racional, em particular.

                            Se segue que reclamar ou não reclamar estão no mesmo patamar. Se gosto mais de reclamar é porque vejo como covardia essa ausência, como não-responsabilidade, como não-enfrentamento, e isso eu não quero para mim nem perdôo nos outros.

                            Eis que, sem querer, AMM tocou num ponto nevrálgico, muito sensível, crucial mesmo, que define as civilizações das elites, as sociedades do povo e as culturas ou nações ou povelites. Fundamentalíssimo, em poucas palavras, razão pela qual abordei o assunto. O ahamsa é importantíssimo, mas o movimento é essencial, com todo o custo implícito, pago em dores por vezes terríveis. Não é a dor que é desejada, em nenhum caso, mas o que ela nos ensina como tolerância. Não é o pessimista que é tolerante e democrático, pois sua opção de não-movimento conduz à ditadura, à tirania, ao domínio de uns pelos outros.

                            Vitória, sábado, 17 de agosto de 2002.

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