segunda-feira, 23 de outubro de 2017


A Dor dos Faquires e a Libertação do Mundo


 

                            A questão dos faquires passa por ser muito simples: deitarem em camas de pregos, pairarem no ar, ficarem enterrados vários dias e outras proezas que sendo verdadeiras ou falsas são secundárias.

                            O principal é a resistência à dor.

                            Evidentemente eles não a evitam, os nervos continuam lá enviando mensagens ao cérebro, mensagens de perigo, perigo constante no caso deles. Então, para quer sofrer? Não deve ser pela necessidade da dor, os masoquistas desejam-na e não fazem parte da religião hindu; pelo contrário, devemos imaginar que não tenham a dor entre as suas mais altas aspirações. Usam-na como lição para si mesmos, para seus pares e para os de fora. A dor não pode fazer parte do processo de iluminação, porque de outra forma todo aquele que sofresse dor teria sido iluminado - as mulheres que fazem parto natural, que o fizeram por milênios sem fim, teriam sido todas iluminadas, bem como as pessoas que sofrem acidentes, que são queimadas e outras, na conta de milhões e centenas de milhões através da geo-história - mas sabemos de poucos iluminados.

                            Não, a dor sucede a iluminação ou é apenas ponte.

                            Resistir é a chave.

                            A lição é que dor existe, mas as pessoas podem enfrentá-la se desejarem, se tiverem disciplina férrea, dizendo de outro modo a humanidade não é construída pela dor. Esse é o ensinamento central. A dor pode atingir alguém, mas essa pessoa pode desconsiderá-la, ultrapassando a memória constante dela; pode de fato deixar de sentir a dor, ou seja, deixar de colocar-se no centro para olhar as coisas mais interessantes do mundo. A dor é só um aviso de agressão, não é o agressor mesmo. O fogo gera dor, mas o gerador do fogo é o mais remoto gerador da dor: extinga o gerador, não o que é gerado, pois o sumiço de um prego não é o sumiço do gerador dos pregos, a fábrica de pregos.

                            Então, ao enfrentar a dor o faquir está dizendo que Deus mesmo pode ser enfrentado (mas não quer dizer vencido, claro que não); às vezes enfrentar Deus é aderir mais fortemente a ele, é entender que a dor, ainda que aborrecida, é necessária como aviso. Não que devamos gostar dela, apenas entender.

                            Por conseguinte, o faquir ao extinguir a lembrança onipresente da dor e do EGO extingue o próprio mundo, a necessidade do mundo como susto, como violência contra a gente. Ele vai além de Buda, porque Buda ainda viu a necessidade dos budas como sustentadores finais dos gênios, dos anjos, dos demônios, dos deuses, dos criadores e dos mundos. O faquir diz: “Ah, Buda também é dor, ele também é continuidade”.

                            Em resumo, a questão dos faquires é mais ampla.

                            Vitória, terça-feira, 16 de agosto de 2005.

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