quinta-feira, 20 de abril de 2017


Herdeiro de Adão

 

                            A gente não tinha TV, comprou preto & branco, foi uma festa, uma alegria, nos divertíamos sem controle remoto, levantando para ajustar a horizontal e a vertical, os fantasmas, a antena, o som, o contraste – ficávamos um tempão passando o botão para a esquerda e a direita, com inúmeros macetes para colocar na melhor posição de recepção razoável. Chovia, a retransmissora dava defeito em Manhuaçu, Minas Gerais (eu não sabia onde ficava, mas era na direção e sentido do avanço técnico), e assim de susto em susto fomos felizes um tempão, porque antes tínhamos de subir no muro do Nego Serafim (que era branco) para pegar boléia na TV “dos bens de vida”, já que ele tinha serraria em Linhares, ES, lá pela década dos 1960. Nesse tempo passavam a programação umas poucas horas por noite.

                            Depois de Médici ter visto as primeiras transmissões coloridas em Brasília em 1970, lá para frente o TV colorido chegou a nós; antes tínhamos uma tela colorida que ficava na frente do cinescópio ou uma outra de três faixas – quem acreditava naquilo? Mais adiante foi a vez do controle remoto, o vídeo-cassete em 1985, a seguir o computador, o som digital, o DVD e tantas outras coisas, inclusive a Internet no mundo em 1989 e no Brasil em 1995. De um TV de 24 polegadas passamos a um de 37 e onde antes bastava um televisor só para a família agora temos um para cada membro, além dos canais fechados, que são 40 ou 50, para quem se contentava com quatro ou cinco.

                            Enfim, nunca estamos satisfeitos.

                            Quando o rei da França soube do Tratado de Tordesilhas de 1494 entre Portugal e Espanha colocando um meridiano divisório a 370 léguas a oeste de Cabo Verde ele perguntou onde estava o testamento de Adão que tinha dividido o mundo entre aquelas duas nações. Se, como raciocinei nos textos mais recentes, artefatos adâmicos puderem ser recuperados, e mais ainda se Pi puder ser aberto, há chance de nos contentarmos?

                            Tenho raciocinado que temos muitas coisas boas, relativamente, para nosso estágio de adiantamento ou atraso, conforme queiramos ver, mas que a abertura de Pi, se se confirmar, colocando em nossas mãos os produtos do Paraíso, em vez de fazer bem pode fazer mal, porque os seres humanos nunca estão satisfeitos – se damos as mãos querem o braço e o corpo todo. Já foi assim com Adão e Eva no Paraíso e talvez venha a ser de novo, o que me inquieta.

                            Vitória, sábado, 20 de dezembro de 2003.

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