terça-feira, 21 de março de 2017


As Escamas do Peixe

 

                            Como eu já disse, é fácil matar e escamar o peixe, mas é difícil colocar de voltas as escamas. Destruir é fácil, construir dificílimo. Jogar bombas é fácil, levantar as construções demora anos ou décadas.

                            Os danos causados às relíquias no Afeganistão pelos EUA foram incomparavelmente maiores que os do Talibã, que bombardeou algumas estátuas de Buda, ação também pavorosa. Como o país é encruzilhada de civilizações desde quatro mil antes de Cristo, o museu central do Afeganistão tinha 100 mil objetos coletados durante vários milênios, dos quais 75 % foram surrupiados e vendidos a compradores estrangeiros (dado que o país é paupérrimo), naturalmente particulares e públicos. Os que os museus estrangeiros compraram (eles se justificarão dizendo que estavam ajudando a preservar parte da história, e será verdade, ainda que canalha) serão expostos ao público, enquanto daqueles dos compradores privados uma parte será mostrada desavergonhadamente, enquanto o Afeganistão for um país miserável e fraco, e outra parte nunca mais será vista, sendo gozada exclusivamente pelos colecionadores, tiradas para sempre das vistas gerais.

                            Também do Museu de Bagdá os americanos e os próprios iraquianos estão tirando todo gênero de coisas. Verdadeira pilhagem.

                            Um dia (não desejo isso, mas a dialética é inflexível, o círculo fatalmente se inverterá) o mesmo acontecerá com os museus americanos e então os que estiverem vivos poderão se lembrar de agora. O Egito também pilhava os tesouros alheios. Na época dos Ptolomeus, Período Ptolomaico do Egito, que vai de 305 a 30 a.C., de Ptolomeu I Soter (Salvador), general de Alexandre fundador da dinastia, até Cleópatra, os bibliotecários de Alexandria roubavam impiedosamente os manuscritos que chegavam até o porto e depois a Biblioteca foi queimada em três ocasiões, uma das quais acidentalmente. E o Egito foi pilhado muitos séculos adiante pelos franceses, pelos ingleses e por vários povos europeus, que a seu tempo, não sei quando, serão também roubados, grande parte dos seus tesouros levada.

                            Ah, destroçar é fácil, mas recolocar as coisas no lugar é dificílimo. Agora que as 75 mil peças estão separadas, várias delas quebradas, como reconduzi-las ao seu lugar de origem?

                            Vitória, quarta-feira, 08 de outubro de 2003.

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