sábado, 27 de agosto de 2016


A Morte Oferece Passagem

 

Dacko Revin está para morrer.

A Morte (é mulher) aparece diante da porta da casa dele num subúrbio dos EUA. É bem apessoada, usa blazer preto marca-de-giz combinando com a calça também do mesmo tecido. Na lapela, discreta foice de ouro com a lâmina tendo de envergadura metade do comprimento do cabo.  Os cabelos estão presos por uma piranha. Leva uma maleta com 5 x 15 x 45 cm, encapada em couro preto, tudo em preto.

Bate, a esposa de Dacko atende.

- Sim.

- Preciso falar com Revin.

Ela não estranha nada, deixa-a entrar como se íntima fosse. Naturalmente, ninguém viu A Morte antes do momento da morte, mas todos foram instruídos a esperá-la, de modo que ninguém a encara mesmo como inteiramente desconhecida. A Morte vai subindo a escadaria, como se conhecesse a casa, e conhece mesmo.

Dacko toma um susto.

- Quem é você? Mesmo sabendo, ele pergunta, como se perguntar afastasse a realidade.

Abrindo sem cerimônia a maletinha junto do criado mudo, ela vai tirando uma seringa, empurrando o líquido como fazem as enfermeiras, fazendo soltar um pouco dele e dando um piparote no conjunto.

- A Morte, claro.

- Como, A Morte, você está de gozação?

- Não, de maneira nenhuma.

- Mas eu ainda posso viver mais, pelo menos uns seis meses, um ano, com sorte até dois.

- De fato, poderia, uns cinco anos, mas acho que não, decidimos que você está “pela hora da morte”, está incomodando sua esposa e filhos, seus vizinhos, seus pais, seus irmãos.

- Não, não, não, pelo amor de Deus.

- É justamente o amor de Deus que me move. Busco o perdão dele.

- Pelo menos existe vida após a morte?

- Como vou saber?

- Mas você existe há muitos, muitos anos!

- E daí, porque as sequóias vivem milhares de anos há vida após a morte? Porque os corais vivem 20 mil anos há vida após a morte? Vida após a morte é de quem permanece vivo. Que tipo de lógica é essa?

- E Deus, você viu Deus?

- Não, só os eleitos são absorvidos. Eu mato 50 milhões por ano.

- Certo, mas a mando dele.

- Pouco importa, ele não quer saber de assassinos.

- Você acha que aquele cachorrinho que eu adorava e mandei matar injetando overdose de barbitúrico conta?

A Morte olha-o de banda, com cumplicidade, e pisca. Como ela é branquérrima fica parecendo deboche.

- Não brinca!

- Nunca brinco. Posso contar piadas que são de morrer de rir, mas nunca estou brincando.

- E Pol Pot, que matou ou mandou matar três milhões. E Hitler? E Napoleão? E Mao? E Stalin?

- Pol Pot vai ter de reencarnar três milhões de vezes, o sacana, só pra dar trabalho.

- Cruzes.

- E vamos parar de desviar minha atenção. Estenda o braço.

- Não, não, não, pelo amor de Jesus Cristo.

- Você é judeu.

- Certo, mas ele também era, um compatriota.

Como ele demora em estender o braço, pelo contrário, procura encolhê-lo, A Morte o puxa com certa rispidez.

- Não precisa ser rude.

- Você tem ideia de quantos ainda tenho de matar hoje?

- Tenha consideração.

- Você teve?

 - Mas o Spirite estava sofrendo.

- O objetivo de vocês deve ser lutar pela vida, não facilitar a morte: fazer pesquisas, desenvolver, lutar até o fim, porque isso proporciona novos conhecimentos para a geração seguinte. Não sei qual interesse Deus tem numa espécie porqueira como a de vocês, mas isso é questão dele. No meu caso já estou quase cumprindo minha cota, outro assassino assumirá em breve.

A Morte aplica a injeção, Dacko começa a estrebuchar, a esposa corre.

- Querido, querido...

- Meu amor, não deixa ela me levar.

Ela, que nada vê, se desespera.

- Quem? - querido, não há ninguém aqui.

Revin dá os últimos suspiros.

Serra, quinta-feira, 11 de agosto de 2011.

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