sexta-feira, 26 de outubro de 2018


Sereno da Madrugada


 

Gamaliel, filho de judeus.

São poucos no Brasil, cinco em cada dez mil, 100 mil no total, na Argentina são 300 mil, parece.

O Gamaliel saía para beber bem devagar, ficava no cantinho dele, calmamente, levava a comida kosher, o dono não se importava, ele pagava para não comer as ofertas da casa. Ficava ali, quietamente, sem perturbar ninguém, no jeitão dele, sem ofender.

Dia após dia ele estava ali, mansamente, não levava livro pra ler, ficava sozinho, pensativo, quieto, sereno.

Chegou-se um e começou a conversar, gostou do papo, dias depois voltou, ficaram horas conversando, o cara saiu tranquilão (esse fui eu, o pioneiro). Depois veio outro (um amigo a quem contei os papos do Gamaliel, o Cristiano, que eu chamava de Cristiano Ronaldo, por conta do jogador português; o nome foi dado em homenagem a Gamaliel, o Ancião, Rabban-presidente do Sinédrio, também chamado de Gamaliel I, século I, professor de Saulo de Tarso, São Paulo; neto de Hillel de Alexandria, o Ancião, 60 a.C. a 9 d.C., professor famoso) e mais outro e mais outros, de repente éramos vários.

Gamaliel era altamente versado na história judaica, muito interessante ouvir, ele falava desapaixonadamente, com tranquilidade, e passamos a chamá-lo de Sereno. Íamos até a madrugada, daí o Sereno da Madrugada. Ele era mesmo, serenidade era com ele, tinha os cabelos branquinhos, aquele narigão de judeu, magro, era um cara bacana, muito versado. Passei a ler mais sobre os judeus, comprei livros de história, revirei as livrarias e a Internet, comprei bem uns 300, independentemente dessa história adversa judeu-cristã, pouco importa, o que importa mesmo é respeitar os povos e as pessoas.

Fiquei encantado, ô povinho resistente!

O que eles passaram não está no gibi (aliás, deveriam fazer álbuns em quadrinhos sobre eles e fizeram mesmo, comprei um, sem falar no livro de humor Quero ser Rothschild). Também fizeram muitas besteiras. Veja só os 10 Mandamentos, era tudo coisa que eles faziam a torto e a direito, sem falar em tudo que ficou de fora. Percorra a Bíblia para ver todos os horrores! Aliás, deveriam separar os horrores em dois gêneros, os dos homens, em muito maior número e os das mulheres, essas menos presentes, mas não menos terríveis. Ele não escondia essas coisas, não, de jeito nenhum, tanto mostrava as vitórias quanto as derrotas, não era parcial.

Em todo caso, Gamaliel era genial.

Ele sentado ali e nós em volta, ouvindo atentamente, no final éramos bem uns 20 ouvindo com toda atenção, focados na fleuma de Gamaliel, era um Buda, um iluminado, o nome cabia direitinho, fazia jus aos originais.

O Sereno da Madrugada de sexta para sábado não falava, era o sabat, mas de sábado para domingo varávamos o dia, sem contar que durante a semana ficávamos o máximo que podíamos, até meia noite ou mais, éramos todos de certa idade, todo mundo bem colocado, a maioria aposentada, os que não estavam podiam chegar um pouco mais tarde, bebíamos cada um o seu e da sabedoria de Gamaliel.

Um dia ele foi passear em Israel, não voltou mais.

Estava sentado num bar, estourou uma bomba por perto, lá se foi Gamaliel entreter Deus. Nós choramos, homens velhos, choramos mesmo, assim na tampa, no maioral, como dizem os jovens. Um monte de homem velho, duas mulheres chorando igual criança.

Espalhou todo mundo, o Cristiano gravou da terceira para frente, quando ele não podia outro se incumbia, acho que eles vão editar um livro, vão faltar os capítulos 1 e 2, porque no primeiro só estava eu e no segundo ninguém levou gravador. Acho que o livro sai daqui a três ou quatro meses, mas não é a mesma coisa, é? Vou contar o que lembro como prefácio, ficará como sendo a primeira fala, capítulo 1, o Cristiano e eu nos reunimos para contar o segundo, a partir do que lembramos.

Digo que uma coisa é sabedoria de papel e outra é ouvir ao vivo.

Serra, domingo, 01 de abril de 2012.

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