quarta-feira, 26 de julho de 2017


Escrever Sobre Duas Armadilhas

 

                            Nosso amigo W, agente de patentes, me disse recentemente para eu falar dos tempos de juventude, de 30 anos atrás. Ele não quer meu mal, é claro, sinto amizade nele, mas é uma armadilha, claro: 1) conto por um preço de capa bem baratinho coisas que ninguém sabe, desde ponto de vista privilegiado, e privilegiado meramente porque ninguém o viveu, colocando algumas pessoas (mesmo somente com iniciais) e correndo o risco de desagradá-las, porque mesmo sem qualquer intenção disso e até pelo contrário tal risco sempre se apresenta; 2) sirvo de testemunho histórico, se houver qualquer importância posterior dos personagens; 3) divirto talvez com “verve” os leitores (com muita sorte os abordados também acharão graça); e assim por diante.

                            Meus irmãos AJG, mais velho, e RPG, mais novo, sugeriram há 25 anos que eu escrevesse livros de ficção científica. Isso deturparia os elementos da minha criação, porque se tudo se passar por ficção as pessoas não precisarão se engajar, se empenhar em compreender, e do outro lado se estaria rebaixando o contador a largar mão de vez de suas intenções de tecnociência. E PFR me disse para “rebaixar” o nível de expressão dos textos que escrevo, de modo a permitir sua leitura pela gente comum. Isso daria a falsa impressão de o tatibitate expressivo ser o meu jeito de colocar os fatos: 1) as elites ficariam irritadas pela obrigação de ler em conotação infantilizada; 2) o povo ficaria igualmente aborrecido por ter sido julgado incompetente de realizar o esforço mais alto de leitura. Claro que PFR é meu amigo, sinto isso, mas é que por vezes até as boas intenções dos amigos podem se mostrar armadilhas.

                            Tanto as sugestões mais antigas quanto a mais recente são no conjunto, claramente, armadilhas, embora totalmente involuntárias, eu o sei; continuam sendo, involuntárias ou não. Entrementes, às vezes até armadilhas são boas escolas, porque é necessária alguma capacidade para torná-las inócuas, ineficientes em sua falta de propósito, e virados do avesso, tornando-as frutuosas para todos os envolvidos.

                            Assim, decidi escrever os livros, os dois.

                            É bom, sim, porque a construção precisa ser muito mais operosa, detalhada e fina do que normalmente seria.

                            ISSO me atrai: o jogo dentro do jogo dentro do jogo.

                            Vitória, sábado, 25 de setembro de 2004.

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