sábado, 27 de maio de 2017


Adão Olha da Escotilha de Ré

 

                            Na seqüência da coletânea Adão Sai de Casa (dei esse nome para amenizar a expulsão, deixando a ele alguma dignidade) ele é banido de Paraíso, na estrela Canopus, mais de 300 anos-luz do Sol e, tendo escolhido a Terra, faz as malhas e parte para a nova residência, muito primitiva. Terá de construir tudo do zero, não é como na casa paterna em que tudo é dado de bandeja - lá (aqui) ele teria de trabalhar, construir uma residência para si e os seus e o resto da trabalheira toda pelos 930 anos que lhe foram dados.

                            Então, como muito tempo depois Abraão haveria de olhar em desespero as ruínas da Tróia Olímpica em chamas da qual se retira com seu pai Taré em fuga, Adão olha pela escotilha de ré o planeta de que está irremediavelmente se afastando para nunca mais voltar. Mas Abraão perde um passado venerando que poderá rememorar para seus filhos e netos, enquanto Adão perde o futuro, aquilo que poderia ter sido e o que poderia ter tido junto a Deus; e se acabrunha, fica deprimido de um modo que ninguém poderá compreender depois. Noutra sala da grande nave está Eva, ainda mais deprimida, pois a causa de tudo foi ela, mais que Adão, de ter sucumbido à ambição de manipular o Plano da Criação.

                            Olhando o passado que se vai Adão pensa no futuro que por mais que seja admirável para nós era medíocre para ele, que já tinha tudo e podia ver todo O Mundo, a Criação inteira, lá do Console que lhe foi dado. Ele dobra a cabeça e chora (ainda com aquele corpo alienígena que vemos no Vaso de Warka, diferente daquela da outra ocasião de Adão Chora, Livro 67, quando ele já tem corpo humano). Só compreendemos que é choro porque imita o humano e um fio de qualquer gosma escorre. Deve ser frisada a nave levantando do solo, ele sempre na retaguarda, amargurado, vencido, mas decidido a apoiar Eva até o fim, ainda que também tenha negado o amor a Deus, participando da conspiração.

                            O planeta vai ficando cada vez menor e mais distante e a cabeça alien vai se reclinando grau a grau, lentamente e ele em desespero fala “Pai”, quase inaudivelmente, a câmara chegando a ele em close para ouvir.

                            Vitória, quarta-feira, 10 de março de 2004.

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