sexta-feira, 21 de abril de 2017


Domingo no Azul

 

                            Deve ser traduzido perfeitamente do italiano e passar numa tela seqüencialmente, enquanto é cantada baixinho naquela língua, porque só ficará bem nela. Mas um cantor cantará a versão em português, enquanto noutro telão passam imagens da Terra vista de fora – sendo toda azul com nuvens.

                            O astronauta que o intérprete representa deve pintar mesmo com as mãos o rosto de azul, como faziam depois os caras-pintadas no impedimento de Collor em 1992, acho – a música é de 1958. O título acima se refere a Domenico Modugno, em português Domingo, referindo-se ao dia de descanso de Deus (na realidade no judaísmo o sábado, sétimo dia, que os cristãos mudaram para domingo). Numa estação espacial o astronauta coloca a música e começa a olhar para baixo; a música repete, enquanto ele sonha com todos os azuis. Então olha em volta, é só escuridão e desolação, não há nenhum planeta azul vivo como a Terra, todos têm cores mortais; vê nos telescópios os retratos da morte.

                            “Voar, ó, ó, cantar (...) no azul pintado de azul”, feliz de estar lasso, frouxo, bambo, tranqüilo, em paz (que é o contrário do que se está passando em baixo, claro). “Voando, voando feliz, eu me encontro mais alto” nos dois sentidos, alto de estar a centenas de quilômetros acima do solo e de estar eufórico (então passam cenas de guerras e misérias). “Um vento rápido me levou e me fez voar no céu infinito” – as imensas possibilidades desperdiçadas, a destruição de florestas, o lixo nos lixões a céu aberto, em cima dos lençóis freáticos que contamina, todo esse gênero de coisa. E, enquanto vai rolando indefinidamente a música, os contrastes vão sendo mostrados, entre o que poderia ter sido e o que é que de fato, todos os gêneros de perversões humanas, duas telas, a do astronauta libertado e feliz no azul pintado de azul e da realidade que perversamente construímos.

                            Vitória, sexta-feira, 26 de dezembro de 2003.

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