quarta-feira, 21 de setembro de 2016


O Quadro da Vida

 

Sabe ali depois do Terminal de Jacaraípe, antes dos eucaliptos parceiros da Aracruz, naquela subidinha em que o ônibus balança para a esquerda e a direita? Um cara gordo de uns 150 kg levantou da outra cadeira e praticamente sentou em cima de mim. Ainda bem que eu estava perto da janela, pois perdi a respiração, fiquei sufocado, entalado, uma banda toda do corpo dele em cima de mim.

Eu, hem? Desconfiei, mas fiquei calado.

Ele tinha uma cara de doido que só vendo.

Olhei de banda, o cara barbudo, nossa senhora!

E se ele tentasse me esganar?

Fico com vergonha, mas se for preciso gritar eu grito, olhei para ver se havia alguém preocupado, não havia, todo mundo olhava para frente. Senti uma opressão no peito, uma sensação ruim à bessa, não sou de rezar, se fosse teria rezado. Achei que iria passar mal, contudo não passei, fomos adiante.

Não demorou muito ele olhou pra mim e perguntou se eu sabia dos quadros dos pintores.

- Sabe dos quadros dos pintores?

Fiz que sim com a cabeça.

Tem doido para tudo, meu caro, gente que sobe em poste para jogar pedra em avião, que rasga dinheiro, que dá chute em parede, que acredita no governo, que escreve para Papai Noel. Todo cuidado é pouco. Fiquei atento.

150 kg, 2,10 m, isso me tornou estranhamente cooperativo. Tinha uns muques de fazer inveja ao Schwarzenegger no auge do Conan, não o de agora.

- Então, aquilo é uma fotografia do espaço e do tempo.

Quem iria imaginar que um gorila daqueles soubesse dessas coisas?

- O pintor fotografou com a mente dele para nos brindar com uma visão especial do espaço e do tempo dele.

De onde ele tinha copiado isso, onde tinha lido?

O ônibus ia sacolejando, minhas pernas estavam sendo esmagadas, tentei sorrir, senti que depois não iria conseguir levantar se alguém não me emprestasse muletas.

Fiz que sim com a cabeça, esperei que não desejasse que falasse, eu não conseguiria. Aí que fui entender a palavra “tartamudo”, gago, eu gaguejaria se tentasse falar. Estava me faltando ar, eu sufocava.

- Qualquer técnica que ele use, é uma fotografia EMOCIONAL.

Nossa, que profundidade! Nunca tinha pensado nisso. Onde esse sacana leu tudo isso?

- Pois bem (eu balançava a cabeça com entusiasmo), imagine um filme pegar aquele retrato, aquela pintura, digamos Delacroix e, recuando, caminhar até ali, parar no ato de retratar e depois continuar... não seria legal?

Balancei a cabeça que sim, eu não iria duvidar nem interpor objeção, não sou doido.

- Entendeu?

O GÊNIO DELACROIX, A LIBERDADE INVENTADA PELA REVOLUÇÃO

Descrição: http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/9/9d/Eugene_delacroix.jpg/200px-Eugene_delacroix.jpg
Descrição: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhGNWzKe-ZgZOV6ojSD63uiH3mbcHHVU-_nESFeMDX9W23D6dgmmBAyEbYW4xAUdOYnehSl4Qzbuwc-6oGI_jzPl5CunIMg8mQEZBFabHWoOZlC_zmwyZx99sLc2GqOvE8LQ4PP3z0F940/s1600/delacroix.jpg

Balancei furiosamente a cabeça.

- Então, vamos supor, o diretor cria um roteiro por encomenda incluindo o retrato, estudando a geo-história de antes e de depois do quadro, que doravante não está mais morto, reviveu, ressuscitou, foi trazido à vida pela película.

Fiquei bestificado de ver um grandalhão daqueles ter uma ideia supimpa assim. Como não fui eu que tive?

Nisso já tínhamos nos aproximado da Serra sede, ali onde fica a rodoviária da Águia Branca, antes de atravessar o viaduto para ir ao prédio da Prefeitura. Ele desceu e depois que o ônibus já tinha arrancado foi que me lembrei de perguntar o nome dele, mas já era tarde.

Eu estava colocando as carnes e os músculos no lugar, ficou dolorido uma semana. Que alívio, nunca me senti tão descomprimido na vida.

De início achei legal, mesmo não sendo ideia minha, depois comecei a pensar: como é que os cineastas vão pegar todas as pinturas, altos e baixos relevos, estátuas, objetos que seja e transformar em filmes? São milhares e milhares dessas coisas, é impossível.

E fazer um só nem teria graça.

Agora até já acho que sonhei tudo isso.

Nunca mais vi o gordo, acho que ele nem existe, foi imaginação minha. E como que um sujeito truculento desses teria uma ideia assim bacana?

Serra, sexta-feira, 13 de julho de 2012.

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